Infância


Às vezes imagino coisas que depois penso que li. Às vezes sonho que li coisas que imaginei. Algures, alguém está a ler este livro. 


Quando era criança, por uma qualquer razão agora impossível de apurar, acreditava que o mundo era composto por uma série de níveis, e que esta terra e este céu, eram apenas uma das muitas terras e dos muitos céus que existiam. Por baixo dela, haveria outra terra e outro céu, com outras pessoas e animais completamente diferentes e assim sucessivamente, em número talvez infinito. E as pessoas e animais eram tão mais diferentes, quanto mais afastados tivessem do nosso nível, porque tanto mais remota seria a sua ligação. Acima de nós, haveria também uma outra terra, com outros mares e outro céu, e acima deste, outro e outro.

Como chegar até lá? Claro que para baixo, seria de suspeitar que descendo por certos orifícios da terra poderíamos cair nesse outro mundo. E que talvez subindo muito alto a uma qualquer montanha, ou até usando um aparelho voador, fosse possível alcançar a parte inferior de um outro mundo. Haveria pedras miraculosamente pendentes e terra escura, segura por raízes de árvores, e se procurássemos bem poderíamos também subir por algum orifício, ou mesmo escavá-lo – por mais claustrofóbico que isso fosse. A profundidade desta camada de terra era variável. Atravessá-la nalguns sítios implicaria percorrer muitos quilómetros, noutros, atravessar a toca de um coelho.

Mas o mais estranho, é que a certa altura deixei de perceber se isto em que acreditava era uma história que me tinham contado, algo que imaginara, ou um facto indesmentível que me fora ensinado. Seria mesmo verdade? E quando algum amigo duvidava da minha palavra, eu perguntava-o à minha avó, para o confirmar. Não é verdade que existem outros mundos, abaixo e acima deste nosso, habitados por outras pessoas e animais talvez de outros tempos? Atónita, dizia-me que não. Que tolices se haviam metido na cabeça do miúdo. Mas senti, ainda assim, que, por momentos, ela ponderara aquela ideia. Isto porque de algum modo lhe era familiar, como se qualquer um a pudesse ter pensado, como se fizesse parte de um imaginário coletivo que todos suprimiam. 

De facto, a única coisa interessante nesta história é a minha aparente confusão acerca da sua origem; a sua indeterminação. Uma vez aconteceu-me o mesmo com um livro que já não me recordo o título. Aliás, é precisamente esse o cerne da questão. Li, ou pelo menos assim o penso, uma história maravilhosa, que me impressionou muito na altura acerca de um mundo perdido e um rei azteca – não importa exatamente o que era. O que importa é que me esqueci do qual o livro em que tinha lido a história e por mais que percorresse todos os livros que tinha lá por casa – mesmo os livros antigos, que herdara do meu irmão mais velho – por mais que o tentasse não a conseguia encontrar. E essa história, que me dera tanto prazer, escondia-se de mim, tornava-se cada vez mais inacessível, e todos os seus pormenores se tornavam mais difusos, difíceis de recordar, até chegar ao ponto de duvidar se a tinha lido ou imaginado. E agora esqueci-me de tudo. E é impossível de recuperá-la, pois mesmo que encontrasse esse livro, mesmo que esse livro existisse, eu já não o reconheceria. Porque todos os outros livros lhe seriam inferiores, pois o que foi esquecido é impossível de igualar. A história é agora perfeita, porque a não consigo recordar.

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