UMA FAMÍLIA EM BRUXELAS, CHANTAL AKERMAN (Tradução de Cristina Fernandes)
Muitas
vezes chegamos a um autor através de outro. Podemos olhar para esse tipo de
genealogia como uma mera curiosidade, um daqueles parêntesis com que se adorna
uma história mais gorda, para atiçar a atenção do ouvinte, engrenando uma outra
velocidade. Mas talvez este parentesco denuncie uma perspetiva. Virar as cartas
e mostrar a mão, esvaziar os bolsos em cima da mesa, pode pelo menos servir
para, fazendo ligações, urdir uma compreensão que, não sendo exata, explica onde
e por onde chegámos.
Há pouco
menos de um ano, enquanto relia a ‘Campânula de Vidro’ de Sylvia Plath
enredei-me numa série de artigos académicos sobre o tema. Um deles relacionava
a obra de Sylvia Plath e Chantal Akerman. Na altura não dei muita atenção à secção
que referia a Chantal, que não conhecia, mas ainda assim, fiquei curioso pela
correlação.
Meses
depois, comprei ‘Uma família em Bruxelas’ de Chantal Akerman e, também um outro
livro que procurava há já algum tempo: ‘Esculpir o tempo’ de Andrei Tarkovsky, um
conhecido realizador de cinema russo. Chantal também é sobretudo reconhecida
pela sua carreira cinematográfica, do que pela vertente literária.
O livro
de Tarkovsky é sobre cinema, dirimindo a especificidade da sua linguagem, mas
vai mais longe, sendo óbvio que Andrei é um grande leitor e apreciador de arte
de uma forma geral. A sua visão acerca da natureza da obra de arte e qual o
papel do artista são o núcleo do livro. São muito interessantes as cartas que
Andrei recebeu de toda a Rússia, no início da sua carreira, que lhe serviram de
motivação para a prosseguir. Cartas de pessoas mais instruídas ou de simples
operários. Uma delas é especialmente impressiva, resumindo de certa forma a
posição do próprio autor:
Uma mulher enviou-me uma carta que lhe fora escrita pela filha e cujas palavras representam, a meu ver, uma extraordinária afirmação da criação artística como uma forma de comunicação infinitamente subtil e versátil: "...Quantas palavras uma pessoa conhece?", pergunta à mãe. "Quantas é que ela usa na sua linguagem quotidiana? Cem, duzentas, trezentas? Envolvemos os nossos sentimentos em palavras e tentamos expressar através delas a tristeza e a alegria e todo o tipo de emoções, exactamente aquelas que, na verdade, são impossíveis de expressar. Romeu disse belas palavras a Julieta, palavras vivas e expressivas, mas certamente não disseram nem metade daquilo que dava a Romeu a sensação de que o coração lhe saltaria do peito, que lhe prendia a respiração e que levava Julieta a esquecer-se de tudo, excepto do seu amor.
Existe um outro tipo de linguagem, uma outra forma de comunicação: a comunicação através de sentimentos e imagens. Trata-se do contacto que impede as pessoas de se tornarem incomunicáveis e que deita por terra as barreiras. Vontade, sentimento, emoção – eis o que elimina os obstáculos entre pessoas que, de outra forma, encontrar-se-iam nos lados opostos de um espelho, nos lados opostos de uma porta... A tela amplia-se e o mundo, que se encontrava separado, passa a fazer parte de nós, tornando-se real... E isto não ocorre através do pequeno Andrei: trata-se do próprio Tarkovski a dirigir-se directamente à plateia, sentada do outro lado da tela. Não existe morte, existe imortalidade. O tempo é uno e indiviso, como se diz num dos poemas: "À mesa, sentam-se avós e netos..." A propósito, mamã, liguei-me a esse filme sobretudo pelo seu lado emocional, mas estou certa de que podem existir outras maneiras de o ver. E quanto a si? Por favor, escreva-me ..."»
Quem
conhece os filmes de Andrei Tarkovsky perceberá mais claramente o que significa
esta ligação emocional. Não há, de facto, qualquer outra abordagem possível aos
seus filmes, que abdicam em grande medida de uma componente narrativa e
dinamitam todas as possibilidades de uma racionalização, ainda que
especulativa, dos mesmos. Filmes que são, ao mesmo tempo, inequivocamente
inquietantes, emocionantes, belos por se aproximarem daquele tipo de verdade
simplesmente pressentida, própria de um regime tangencial, tão próximo quanto
possível de um entendimento impossível de fixar.
Os filmes
de Chantal Akerman não poderão ser abordados de forma muito diferente. São na
sua essência poéticos, no sentido em que participam do mesmo tipo de verdade
tangencial, inalcançável, mas capaz de exercer um efeito gravitacional
suficientemente intenso para descolar um enlevo íntimo. Na sua abordagem
particular, Chantal procura recorrentemente uma justaposição em que chega a uma
verdade pelo seu avesso, como se tivesse uma obsessão particular por circular
em sentido contrário ou fora-de-mão. Também no que respeita à identidade propõe
muitas vezes uma inversão e uma fluidez, em que ela e a mãe (Natalia Akerman)
se confundem, misturam, fundem, deslizam. Isto é observável tanto nos seus
filmes como no seu livro, ‘Uma família em Bruxelas’. Que quero eu dizer com
isto? Por exemplo, no seu filme ‘Notícias de Casa’ (‘News from Home’, 1975)
escolhe sobrepor imagens de Nova Iorque, onde vivia na década de 1970, com a
leitura de cartas de sua mãe, em que esta lhe pede recorrentemente que escreva
mais vezes, que dê notícias de si. Todo o filme é apenas isso. Sendo ao mesmo
tempo uma resposta às cartas de sua mãe e a sua impossibilidade. Aqui há também
uma relação com Sylvia Plath e ‘Letters Home’ (1975), volume de correspondência
publicado pela sua mãe, Aurelia Plath, depois da morte da filha, como uma
espécie de contrapartida, oferecida por Ted Hughes (o viúvo), pela autorização
de publicação nos Estados Unidos do romance ‘Bell Jar’ (Câmpanula de Vidro’). As
cartas de Sylvia à mãe, quando comparadas com entradas do seu diário pessoal, da
sua poesia ou também no romance, são um espelho de uma ambivalência irresolúvel,
de uma proximidade e, ao mesmo tempo, de uma impossibilidade de comunicação. Não
há registo de quando Chantal terá lido a obra de Sylvia Plath, e em específico
este volume de correspondência, mas o seu interesse pelo tema é inequívoco,
pois em 1986 filma a sua adaptação de ‘Letters Home’, uma peça originalmente
escrita por Rose Leiman Goldemberg, sendo inegáveis as semelhanças dramáticas,
embora invertidas, pois em ‘News from Home’ as cartas são da mãe e não da
filha, que apenas as lê.
Um outro
exemplo, talvez mais claro, de como Chantal diz algo através do seu avesso é
uma pequena cena de ‘No Home Movie’, filme de 2015, o último que realizou. O
próprio título do filme pode ter leituras diversas e inversas. Pode ser lido
como ‘não é um filme caseiro’, embora este seja filmado com câmaras digitais,
empunhadas pela própria realizadora, ou deixadas estrategicamente pelo
apartamento, sempre num ambiente doméstico. Por outro lado, pode aludir à
ausência de uma casa, à sensação de não-pertença, desenraizamento, relativa a
mãe e/ou à própria autora. Mas voltando à cena a que me referia, nesta Chantal
filma o ecrã do seu computador onde faz uma chamada de vídeo com a mãe, entre
os Estados Unidos e Bruxelas. A certa altura a mãe interroga-a: “Mas porque me
filmas?”. Chantal primeiro responde de forma ligeiramente evasiva, “porque
filmo toda a gente mamã, e especialmente a ti”. Mas depois acrescenta: “quero
mostrar a toda a gente que já não existe distância no mundo; eu estou nos
Estados Unidos e tu estás em Bruxelas e estamos aqui a falar. Já não existe
distância no mundo, não é verdade?”. Segue-se um pequeno silêncio da mãe, como
se estivesse a digerir estas palavras. O mesmo tipo de silêncio que ocorrerá a
cada um dos espectadores, pensando: é isso e o seu contrário; nunca como agora
houve tanta distância no mundo.
Ao ler
‘Uma família em Bruxelas’ de Chantal Akerman senti uma forte ligação com o
livro. Muito semelhante à experiência de leitura de ‘A Campânula de vidro’,
embora os livros sejam muito diferentes. Ambas são inteligentíssimas – parecem
dotadas de uma espécie de intuição que lhes permitiu chegar a soluções que não
são óbvias. São também extremamente sensíveis, conduzindo-se sempre com extrema
contenção, evitando a emoção básica, preferindo a subtileza.
Mas de
que trata afinal este livro? Fala de uma família, como indica o título, mas
também do seu avesso ou contrário – tal como uma chamada Skype simboliza, ao
mesmo tempo, o fim de toda a distância no mundo e o seu alargamento
irreversível. O romance autobiográfico abre de forma inusitada, plena de
movimento:
Além disso vejo ainda um grande apartamento quase vazio em Bruxelas. Só com uma mulher geralmente de roupão. Uma mulher que acaba de perder o marido.
prosseguindo
depois com uma linguagem simples e familiar, num estilo consistente e irrepreensível,
onde é impossível encontrar uma brecha, com longos parágrafos, poucas vírgulas
que aceleram a narrativa, num fluxo de consciência pleno de repetições,
semelhante no seu ritmo e musicalidade a uma oração.
Ela pensa muito na filha que pensa demasiado, pensa muito nela porque ela pensa demasiado, é uma consumição principalmente quando a filha se põe a falar demasiado e as suas palavras vêm desses pensamentos e começa a falar demasiado e demasiado depressa porque os seus pensamentos avançam demasiado depressa tão depressa que já nem sequer é um pensamento e depois começa a sentir-se mal e depois não há nada a fazer senão esperar que passe e volte a pensar normalmente enfim como pensa habitualmente pois passado algum tempo é o que acontece. Ela conhece a filha enfim tanto quanto se pode conhecer uma filha. Ela sempre pensou que esta filha saía a ela mas agora pensa que esta filha sai ao marido que morreu e pensa que foi talvez depois de ele ter morrido que começou a fazê-la pensar nele. Ela assobia sem fazer som como o marido, faz muito isso quando anda na rua as mãos cruzadas atrás das costas como o marido, esquece-se de falar e assobia sem som como o marido e as suas mãos também se parecem com as mãos do marido. Ela pensa muitas vezes nas mãos do marido e pensa muitas vezes nas mãos da filha. A filha pensa nos familiares chegados que estão à beira-mar num país quente. Ela também já foi muitas vezes a esse país quente visitar a irmã e a prima e chegou mesmo a ver por lá um velho tio que já morreu e nunca tinha pensado que o voltaria a encontrar pois a última vez que o tinha visto só tinha oito anos e foi antes dela vir para a Bélgica e ele não, ele ficou na Polónia.
Mas voltando atrás, à família do título, opõe-se a mulher sozinha num grande apartamento quase vazio em Bruxelas. Tem duas filhas: a de Ménilmontant, a que não tem filhos, a que não conduz; e a mais nova que vive ainda mais longe, quase na América do Sul. Fala com elas ao telefone. Tem família chegada em Bruxelas, que visita todas as sextas-feiras e “isso até aquece os ossos”. Distância e proximidade são temas recorrentes e paradoxais em Chantal Akerman. A narrativa avança e descobre-se por fim a família:
Mesmo quando estamos a dormir sentimos se uma casa está cheia ou vazia e durante um certo tempo a casa ficou cheia. E à noite durante uma semana havia um monte de gente por todo o lado. Toda essa gente comia, falava e bebia, eu e as minhas duas filhas sentávamo-nos ao lado umas das outras e esperávamos, por fim toda aquela gente foi embora e então sentíamos a casa cheia mas era apenas a família que tinha vindo de todo o lado. E à noite sentíamos a família. Os outros eram amigos os amigos de sempre, havia amigos de sempre que não víamos quase nunca mas que estavam ali, os amigos que víamos nos casamentos em volta de um monte de mesas redondas e lá eles estavam bem vestidos e aquecidos pela dança e pela música. E depois a minha filha teve de partir para trabalhar tive um mau pressentimento quando ela partiu mas não lhe disse nada. Bem vi que os seus olhos azuis estavam quase brancos e que não era altura de ir trabalhar. Mas mesmo à noite em casa ela trabalhava na sala de jantar num computador portátil e sentia-a enquanto dormia e isso inquietava-me porque sei que a minha filha mais velha precisa muito de dormir senão tem demasiados pensamentos e não há nada que os impeça e às vezes quando acordava a meio da noite para ir à casa de banho via o seu rosto inclinado para a luz do computador e os seus olhos azuis quase brancos. Uma noite aproximei-me, ela não levantou a cabeça e acabei por pousar a mão sobre o seu ombro, ela ergueu o rosto para mim e disse está tudo tão calmo esta noite. Sim estava calmo. Já não tinha vontade de voltar para a cama então sentei-me à mesa à sua frente e fiquei a vê-la a trabalhar. Passado um bocado ela disse-me baixinho quase manhã apetece-me tomar o pequeno-almoço. Fomos as duas para a cozinha e tomámos o pequeno-almoço juntas. E olhámos pela janela da cozinha o jardim lá em baixo. O jardim estava todo gelado e já há muito tempo que não tomávamos o pequeno-almoço só as duas e eu comi uma torrada inteira e senti que a torrada tinha passado então a minha filha disse-me é verdade que estava bonito e que já não tinha a boca descaída e o seu rosto estava sereno e depois disse e agora o que é que vamos fazer.
Não era uma pergunta e não havia nada a responder.
Uma
curiosidade na construção narrativa de Chantal, capaz de desfazer o penteado de
qualquer professora do ensino secundário, são os chamados deslizamentos de
identidade (“identity slips”). Sem qualquer aviso, o narrador escorrega
de uma personagem para outra, causando um arrepio na espinha. Neste caso, começa
a narrar a história na terceira pessoa e passadas 15 páginas, literalmente a
meio de um parágrafo, salta para a mãe:
Ela tem uma única filha e uma única neta. E as duas estão longe. Talvez seja melhor assim talvez não. É difícil dizer este tipo de coisas. Sempre pensei que a minha tia exagerava com as suas críticas mas agora às vezes pergunto a mim mesma se no fundo ela não tem razão mas mesmo que tenha razão as suas críticas não servem para nada. Em todo o caso dá para fazer conversa senão o que é que se há-de dizer.
Mas tarde
a narração passa para a filha mais velha, numa viagem de automóvel entre Paris
e Bruxelas, e retorna finalmente à mãe. Mas estas transições são feitas de uma
forma tão natural quanto inquietante, uma transmigração em que se torna
impossível não pensar também na autora, o que adensa o jogo de identidades,
pois este é afinal um relato autobiográfico.
Por
último, como um submarino que só rara e discretamente emerge, há um assunto que
talvez determine a psicologia das várias personagens, exatamente pela sua
recusa: os campos de concentração na Polónia por onde a mãe passou e
sobreviveu, deixando para trás os pais. A sua rejeição, como se de um segredo
se tratasse, só pode ampliar um horror que não pode ser imaginado. Este
recalcamento condiciona mãe e filha e talvez determine a sua dinâmica
relacional. Ou talvez o relevante seja que apesar de tudo o que aconteceu,
aquelas pessoas escolheram viver, criar os seus filhos, festejar os seus
casamentos, chorar os seus mortos.
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