A mancha - espelho - 7/8




Henrique começou a viver lá em casa. Simplesmente não saíra.

Durante muito tempo, Arminda e Henrique dormiram na mesma cama, mas não fizeram amor. Até que numa sexta-feira à noite, quase sem intenção, as suas faces se aproximaram e cada um sentiu o sopro brando e quente do outro. A mão de Henrique pousou sobre a anca de Arminda. Os olhos dela estremeceram e eles beijaram-se.

No dia seguinte, Henrique foi à loja de ferragens e comprou um espelho grande para a casa de banho. 

De manhã, durante pequeno almoço, todos conversaram alegremente e à tarde, depois do almoço, preguiçaram à sombra no alpendre. Gabriel saiu a correr:

– Mãe. Posso ir brincar no largo?
– Sim.

Os dois foram para dentro, para o quarto, e fizeram novamente amor. Como quem bebe um copo de água fresca, ainda sem sede.

Os dias correram felizes. Tudo estava bem. 

Mas numa fria manhã de outubro Arminda acordou com um estrondo. Algo que caíra ao chão e se estilhaçara. 

Henrique estava na casa de banho. Tinha a mão direita ensanguentada. O espelho estava partido. Havia pedaços espalhados pelo chão.

– O que fizeste? Estás bem?
Ele não respondeu. Enrolou a mão numa pequena toalha branca e saiu.
– Henrique?
– Não me apetece falar.
Vestiu uma camisa e saiu de casa.

Nessa noite voltou a visitar a casa da Dona Maria.
– A Sofia?
– Está com um cliente. Mas temos aqui umas raparigas novas – e a dona da casa estendeu o braço na direção do bar, onde as raparigas se encostavam.
– Não. Eu espero pela Sofia.
– Sabe que pode demorar toda a noite – e piscou-lhe o olho.

Sentou-se num canto e enxotou todas as raparigas que se tentaram aproximar. Bebeu muito.

Por fim, Sofia desceu. A patroa deu-lhe uma palavra e apontou para o canto onde estava Henrique. Ela aproximou-se.

– Há muito tempo que não te via por aqui.
– Sim. Há demasiado tempo.

Reparou que ele tinha a mão envolta por uma ligadura. Algum sangue repassara-a, mas agora já estava seco.

– Queres subir? Está aqui demasiado barulho.
– Claro.

Olhou para Sofia. Era muito bonita. Tinha o cabelo pintado de loiro. De algum modo, vivia ali sem mancha. Não era como as outras. Não ficara feia e peganhenta. E na sua cara não havia sombra de pecado ou culpa.

– Como é que consegues viver aqui? – disse Henrique, estendendo-lhe um cigarro.
– Como assim?
– Nada. Não sei bem o que queria dizer.

Ela não respondeu. Era sobretudo isso que lhe agradava nela. Sabia quando estar calada. Quando aguardar em silêncio.

Entraram no quarto e fecharam a porta. A música tornou-se um murmúrio grave e indistinto. Henrique sentou-se num canto, num cadeirão, enquanto ela permaneceu em pé.

– Desculpa a desarrumação… tenho que trocar os lençóis.

Henrique viu que a cama estava ainda desfeita. Parecia quente. As marcas dos seus anteriores ocupantes eram ainda bem percetíveis, como um desenho. Reparou numa mancha de sémen, ainda fresca.

– Não tens vergonha do que fazes? Não te sentes culpada?
– Deveria?
– Não sei.
– Acho que não.

Desta vez foi ele que se calou, esperando. 

– Não faço nada de errado. Sexo por dinheiro, apenas isso. O sexo é sujo, não o podemos deixar entrar nas casas das boas famílias. As manchas de sémen poderiam causar danos irreparáveis na dignidade das esposas. Como é que as poderiam encarar ao pequeno almoço depois de se terem vindo na cara delas. Não podem, não é possível. Nem uns, nem outros poderiam suportar essa situação. Mas ainda assim, os homens gostam de se comportar-se como animais, subjugando as fêmeas sob a força dos seus braços, mordendo-lhes o pescoço, se assim for preciso, submetendo-a às estocadas imperiais do seu pénis. Os homens precisam de exercer a prerrogativa do seu pénis. O que procuram é um jogo de poder. Precisam de dominar ou ser dominados, conforme aquilo que esteja por realizar na sua vida. Procuram uma fantasia… e eu sou essa fantasia. Não me sinto humilhada por nada do que faço neste quarto. Nada me mancha. Podem fazer tudo o que quiserem de mim. Podem pedir-me tudo. Em nenhum momento vou baixar os meus olhos ou sentir vergonha se me cruzar com eles na rua. E em nenhum momento me sinto culpada. O problema é que sacralizaram o amor ao ponto de excomungar o sexo. O que me causa confusão é quando alguém entra aqui e não me quer foder!... O que costuma ser o teu caso.

O cigarro de Henrique queimara até ao fim, por entre os dedos. Ela abriu a janela e sentou-se na cama, encostada à cabeceira. O ar fresco da noite penetrou no quarto.

– Despe-te – ordenou Henrique.

Ela olhou-o nos olhos. Deu mais um passa no cigarro e pousou-o no cinzeiro. Depois, levantou-se lentamente, sem nunca tirar os olhos dele, e tirou a roupa. Fez todos os movimentos de forma lenta e deliberada, sem qualquer hesitação.

Era muito bonita. O seu corpo era firme.

Deu um passo na direção de Henrique. Ele desviou os olhos. Uma mosca entrara pela janela e pousara em cima dos lençóis, sobre o sémen derramado. Não conseguia deixar de olhar para a mosca. Via as suas mandíbulas enterrando-se nos restos sémen; os seus olhos multifacetados, refletindo o quarto como um caleidoscópio do horror; depositando ovos infinitamente, tornando tudo interminável. Disse-lhe então: 

– Dança para mim.

E acendeu um novo cigarro. Àquela distância conseguia cheirar-lhe o sexo.

Ela dançou, movendo-se lentamente.

Sentiu-se enfim excitado e fizeram amor de forma violenta, em cima dos lençóis sujos.

– Nunca sentes… Quer dizer. Eu sinto, às vezes, que…
– Eu sei.
– Não sabes… Ninguém sabe.
– Não sei.

– É como uma mancha. Fica em frente dos meus olhos. Sinto-me sujo. E o mundo inteiro fica baço, deformado. E tudo o que eu queria era que me limpassem os olhos, que removessem esta mancha. Sinto-me marcado como um condenado. Talvez seja isso mesmo, um condenado. Uma alma penada, um fantasma, à procura de redenção. Só que não há redenção. Nada pode apagar o que fiz. Nada.

Enquanto falava, a cinza do cigarro caiu-lhe no colo, em cima do lençol. Estavam os dois sentados de encontro à cabeceira da cama.

Sofia pensou por um momento no que lhe haveria de dizer. Já tinha ouvido, como toda a gente, histórias sobre a morte do seu filho.

– Podias ter feito alguma coisa de diferente?
– Claro que sim.
– Procedeste mal? Foste um mau homem? – olhou-o diretamente, mas ele baixou os olhos.
– Não… Mas a culpa é minha. A culpa é minha. Nada a pode remover.
– És um bom homem. É por isso que te sentes culpado.

Fez uma pausa e depois continuou:

– Só uma mulher pode apagar essa culpa. O que é que queres fazer comigo? Faz o que quiseres comigo. Sabes? Vais sentir-te melhor.

– Nada me faz sentir melhor.

De novo o silêncio. Ambos procuravam as palavras sem pressa.

– Às vezes chorava – disse Sofia. – Tu não? Ajuda-me.

– Não. Nem quando o meu pai me batia… Nunca lhe daria essa satisfação – deu uma pequena gargalhada. – A minha mãe sabia que havia algo de errado comigo. Tentava por todos os meios apaziguá-lo... Mas não era assim tão mau… o velho gostava de mim; não era um completo maníaco. Se fosse… teria acabado comigo – colocou o cigarro na boca e aspirou longamente; a sua ponta tornou-se profundamente incandescente, como uma pedra preciosa. – Teria acabado comigo… Nem quando o meu filho morreu. Nem uma lágrima. Nada.

Lembrou-se de que tinha chorado quando vira Gabriel à porta do quarto. Mas não disse nada sobre isso.

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