Está tudo perdido
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Clothide BL, Lost In Transition Project, https://www.flickr.com/photos/clothilde_bl/12562511033 |
Não duvides da tua beleza, disse-lhe. Como é possível que o faças? Isso é uma falta de confiança injustificável. Devias arranjar um homem que, de manhã à noite, te venerasse e dissesse sem reservas como és bela.
Suponho que já estiveste apaixonada. Talvez estejas agora mesmo apaixonada. Sabes, portanto, o que é isso. Conheces o abandono e a dor. A profunda felicidade. É como se alguém te tapasse levemente a boca e te pedisse para não respirares. Um frenesim invade-nos o corpo. Como se corrêssemos risco de vida; mas somos nós próprios que sustemos a respiração. Não se pode estar calmamente apaixonado. Talvez se possa amar calmamente, mas a paixão é por natureza violenta. E é do sufoco da paixão que tenho saudades. Lembra-te desse frenesim. O frenesim em que todas as moléculas do teu corpo se agitam. Como se estivesses prestes a transmutar-te num inseto, ou numa qualquer espécie de monstro. Há dentro de nós um monstro que aguarda. É perigoso estarmos demasiado perto de alguém. Estando demasiado perto é possível ver demais. É possível ver a beleza sem reparo ou remissão, aquela que nos faz chorar e acreditar em deus. Mas também é possível entrever o monstro – vil e purulento, que se agita e inquieta, esfregando a cara no chão, rebolando-se como o diabo.
Mas que estou eu a fazer? A falar-te de monstros. Não admira que esteja sozinho. O meu espírito oscila entre a profunda comoção e a total abjeção. O horror por tudo o que é humano. Não há ninguém mais cruel do que as crianças. São capazes de tudo o que os adultos se refreiam. São inclementes.
Preciso tanto de ser amado. Ou talvez de amar. O que deve ser a mesma coisa. Não digo isto a ninguém. Confesso-o apenas a ti. Trata-se de algo de metabólico, como respirar. Algo que me mantém uno e reconstrói, ou um catabolismo que me limpa. O amor é isso: um processo metabólico essencial (como respirar, repito).
Contudo, sinto-me profundamente sozinho. O que não tem a ver com os outros, mas exclusivamente comigo. Não haverá nada a fazer. Sinto, ao mesmo tempo, uma profunda comunhão e um afastamento irremediável. Sinto uma profunda empatia pela crueldade. Pelo que há de mais decadente na natureza humana. A inclemência. Tudo o que grita e ruge. O infecto. O purulento. Não é fácil perceber isto. Mas se formos capazes deste amor, nada nos destruirá. Estaremos perto da unidade, da comunhão universal; da pele que se quebra e mistura, até que o ego se perca e tudo, tudo diluído, sejamos apenas compaixão. Como os santos. Mas porque te falo disto?
O amor dos santos é impossível.
Convém-te o amor de um homem. Com todos os seus defeitos.
É na carne e pela carne que nos podemos aproximar de deus. Aquele que vive dentro de nós. Acredita. Não digo isto para te seduzir. Seria ridículo. Um homem da minha idade. E tu. Não achas ridículo?
Não brinques com o meu coração. É frágil…
Já te contei tudo acerca do amor dos homens. É absolutamente insuficiente. Falta-nos quase tudo. Que mais te posso dizer?
Estou perdidamente apaixonado por ti. Sabes disso?
É inapropriado. Por várias razões inapropriado. Mas não o posso evitar. Já tentei. Acredita, já tentei. E agora?
Está tudo perdido?
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