A Organização – Entrevista











Nesse momento, sem mais nenhum aviso, o elevador começou a descer como se estivesse em queda livre. Era primeira vez que visitava o subsolo, onde, sabia agora, residia a maior parte de Organização, sobretudo os funcionários de categoria mais elevada, que não gostavam de ser perturbados pela luz do sol, ou qualquer outra distração do mundo exterior, pois precisavam de trabalhar incessantemente. 

Todos os funcionários de grau superior tinham um secretário. Era este que fazia todo o trabalho. Quer no que diz respeito à redação de relatórios e respostas a todo um sem número de solicitações, como no que diz respeito a aspetos mais práticos do dia-a-dia dos funcionários, como seja a alimentação, vestuário, e mesmo o famigerado sono, que era tão raro. Eram os funcionários quem ditavam os relatórios, obviamente, mas ninguém nos garantia que os secretários escrevessem exatamente o que lhes era ditado. Primeiro porque, demasiado cansados, os funcionários raramente reliam o que fora escrito. E em segundo lugar, mesmo que o fizessem e efetivamente detetassem alguma incorreção (o que nem sempre acontecia), raramente confrontavam os secretários, pois temiam ser contestados e, ainda que timidamente, demonstrada a superioridade da ideia do secretário, ao emendar o funcionário.

Após alguns minutos o elevador parou finalmente. O secretário (um homem muito alto, mas que andava permanentemente curvado sob a cintura), puxou as grades do elevador e saíram para um corredor muitíssimo movimentado. Se ao nível do rés-do-chão e mesmo nos andares superiores o edifício parecia quase deserto ou abandonado, aqui em baixo, pelo contrário, assemelhava-se a um formigueiro. Vários secretários, identificados pelo seu fato escuro e alfinete na lapela, percorriam os corredores em todos os sentidos, carregado invariavelmente uma pasta com documentos.

– Venha comigo. Não se afaste – disse o secretário, agarrando-o pelo braço. K. vestia o seu melhor fato. O secretário ajustou uma vez mais os óculos sobre o nariz. – Já estamos talvez atrasados. É que, como sabe, não havendo uma hora marcada, corremos sempre esse risco. Há muito que contesto este sistema, mas sabe como os funcionários podem ser obstinados. É que se houvesse uma hora marcada, poderia acontecer que eles próprios chegassem atrasados e não havendo hora bem definida, esse risco, é apenas do entrevistado.

Viraram para um corredor lateral. Nesse corredor havia apenas um gabinete e à sua frente apenas uma cadeira, onde se sentava um individuo cabisbaixo, pobremente vestido.

– Tem que esperar aqui – disse o secretário dirigindo-se a K.. Bateu levemente à porta e entrou de imediato. Lá dentro, na obscuridade, um homem gordo dormia à secretária.

– Tem muita sorte, sabe – disse o homem que estava sentado. – Não lhe pediram para sentar. É sinal que deve demorar pouco a ser chamado.

– Já está aqui há muito tempo? – perguntou K..

O homem pareceu ficar ofendido com a pergunta e nem sequer respondeu.

O secretário saiu do gabinete logo de seguida: 

– Entre, por favor. Já está afinal atrasado.

– Com certeza. Mas este senhor não estava primeiro do que eu?

O secretário ficou por um momento confuso.

– Mas não lhe disse que está já atrasado para a sua entrevista. Devo preveni-lo que este seu procedimento em nada lhe é favorável. A preocupação com assuntos alheios, evidencia apenas o desprezo pela sua própria situação. Este senhor não precisa com certeza da sua ajuda, muito menos da sua preocupação. Não está por certo familiarizado com as insígnias usadas aqui no subsolo, mas este excelentíssimo senhor não está aqui à espera de nada; é um funcionário de altíssimo grau e é este o seu local de trabalho. É que estes funcionários têm também pouquíssimas obrigações, embora de extrema importância, e, portanto, já não precisam de um gabinete, pois também não concedem entrevistas. 

– Peço desculpa pela minha ignorância.

– As suas desculpas não ajudam em nada.

Despediu-se respeitosamente do homem que estava sentado e entraram no gabinete. Lá dentro, o homem gordo que vira há pouco, continuava sentado atrás da secretária, ainda na obscuridade, e acendia agora um charuto. Tossiu convulsivamente. Os seus olhos estavam inflamados e as pupilas eram quase invisíveis por entre as pálpebras semicerradas. Por momentos, parecia querer dizer alguma coisa, mas deixou-se uma vez mais abater no seu estado soporativo, manejando o charuto por entre os dedos inchados e lançando um olhar laudânico na direção da mesa. O gabinete era apenas iluminado pelo candeeiro que estava sob a secretária. O secretário sentou-se na penumbra.

K. sabia já que lhe cabia iniciar a conversa, isto apesar ter sido convocado sem qualquer indicação acerca do assunto. Era este o procedimento habitual dentro da Organização.

– Fiquei muito satisfeito com a minha nova colocação, senhor H. – disse.

– Hum… deveras? – replicou o funcionário, subitamente desperto. – Ajude-me aqui meu caro – disse logo de seguida, dirigindo-se ao secretário.

– O senhor. K. está colocado na divisão de transportes. 991º andar, gabinete 3.

– Ah, percebo. Não o incomoda o sol?

– Não. 

– Ótimo. 

– Mas claro que preferia trabalhar cá em baixo.

– Não seja demasiado ambicioso. Não imagina as exigências do trabalho no subsolo. Não há descanso… Até mesmo durante o sono, o nosso pensamento é invadido pelo espectro do trabalho. Lá em cima, contudo, o sol não é menos exigente… a sua luz impiedosa não oferece qualquer descanso, a todo o momento nos sentimos observados – também já lá trabalhei durante um curto período de tempo. Sentimo-nos cansados, não por trabalhar demasiado, mas exatamente porque não conseguimos trabalhar.

– Devo então depreender que a Organização coloca nos pisos superiores os funcionários cujo trabalho pretende anular?

– Não sei se estou a compreender… 

– Não seja insolente – interveio repentinamente o secretário. – A Organização não tem qualquer intenção definida. Poderá pelo contrário pensar que serão nomeados para os pisos superiores aqueles, cujas capacidades, lhes permitem trabalhar em condições tão adversas. É que aqui em baixo, como terá visto, não há espaço para toda a gente. Mas em vez disso prefere articular uma qualquer teoria da conspiração sem qualquer fundamento.

– Como todos os funcionários, é meu desejo contribuir com o meu melhor para o funcionamento da Organização. Entendo que aqui em baixo, no subsolo, estão os funcionários do mais elevado grau. Não poderá por certo condenar a minha ambição de um dia fazer parte desta elite.

– Infelizmente não compreende nada, meu caro – respondeu por seu turno o funcionário. – Faz deduções e extrapolações com base em fatos infundados. Evidencia uma falta de estudo arrepiante. Até os conceitos mais básicos, aqueles, senhor secretário, que até o mais insignificante funcionário de ligação deveria conhecer, me parece que o senhor K. já esqueceu. Senhor K., deveria ser menos ambicioso. O seu lugar na Organização será com certeza determinado sem que seja necessária a sua opinião ou intervenção. A hierarquia, deveria sabê-lo, é uma mera mistificação, pois que todos os funcionários são providos de livre arbítrio e são responsáveis por todos os seus atos. Consequentemente não há posição mais importante, ou menos importante, pois que todas são imprescindíveis, até certo ponto, para o funcionamento da Organização. É claro, que o contrário, poderá ser igualmente argumentado: que nenhuma função, tarefa ou funcionário é imprescindível ao funcionamento da Organização, e isso é ainda talvez mais verdadeiro do que o que disse anteriormente…. Mas, como vê é tudo uma questão de argumento lógico, e as duas afirmações não se excluem, antes pelo contrário se complementam. Bem vê que ser chefe numa organização em que cada um faz o que entende, não é ambição que se recomende. Quanto mais alto na hierarquia está um funcionário, maior é, também, em potência, a sua angústia, pois é responsável por uma turba que afinal não controla e que dificilmente poderá dirigir. Está dependente da boa vontade dos seus subordinados… Não são, como se poderia pensar, os subordinados, que deles estão dependentes, pois em nada de fundamental a sua vida poderá ser condicionada pelo seu superior hierárquico. Para ser um funcionário superior é, pois, necessário… bom na realidade não me atrevo a dizer mais nada a cerca deste assunto. Não iria compreender.

– Se bem interpretei as suas palavras, diria que é necessário ser um imbecil.

– Isto é um completo ultraje! – disse o secretário indignado.

– Acalme-se, senhor secretário. Não estou sequer interessado em ouvir a sua explicação senhor K.. A nossa entrevista terminou.

No dia seguinte, K. recebeu uma comunicação indicando que tinha sido novamente colocado como funcionário de ligação, o nível mais baixo da hierarquia. Estava, contudo, indeciso sobre o que pensar acerca disto. Talvez fosse afinal uma promoção, pois que melhor lugar haveria na Organização do que este. Dispunha afinal do seu livre arbítrio. E não tinha qualquer obrigação ou responsabilidade. 

Não o preocupava a hierarquia, nem a despromoção. Preocupava-o, sim, que não houvesse uma ordem. Se não houvesse qualquer ordem, se a hierarquia fosse inexistente, então também a Organização o seria e não haveria nada a combater, nada a derrotar. Isto, não porque não houvesse um inimigo, mas sim porque esse inimigo estava por todo o lado. Era os cidadãos e os funcionários que procuravam a subordinação. Esta não lhes era imposta, pela simples razão que a um homem, nada pode ser imposto.

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