A mancha - dor - 1/8
Henrique estava completamente bêbado.
– Já não te chega por hoje?
– Eu é que sei quando chega. O meu dinheiro não vale o mesmo que o dos outros?
– Não estou preocupado com o teu dinheiro…
– Serve-me uma cerveja ou parto esta merda toda.
– É isso que eu queria evitar. A última. Toma. Desaparece daqui.
Henrique continuou encostado ao balcão.
– O que é que se passa com ele hoje? – perguntou Raul em voz baixa para o grupo que jogava dominó na mesa do café.
– É um dia difícil para ele… – respondeu o Sérgio.
Henrique ouvi-os cochicharem e virou por momentos a cabeça na sua direção. Calaram-se. Na obscuridade do café era quase impossível distinguir as suas feições. A luz do fim da tarde era coada por uma cortina de tiras plásticas, que se agitava levemente, fazendo o sol cintilar. As moscas giravam em torno das cabeças e eram, por vezes, eletrocutadas por um aparelho que estava pendurado no teto, emitindo uma luz púrpura. O chão do café estava peganhento. Cheirava a cerveja e a mijo.
– … o filho…
Henrique voltou a fitá-los. Pegou na cerveja e caminhou na direção da porta. Quando passava junto deles, deu um pequeno encosto na mesa de fórmica, fazendo as peças de dominó tombarem e os copos transbordarem. Todos se agitaram em torno da mesa fazendo as cadeiras ranger no chão. Fitaram-no.
– Ups!... desculpem lá camaradas. Foi sem querer.
A sua expressão parecia de enfado ou sono. Os movimentos eram lentos e ligeiramente descoordenados. Ficou ali parado, sem dizer nada, até que os homens retomaram o jogo. Depois, entornou um pouco de cerveja por cima da cabeça de Raul. E riu-se.
– Não fiques chateado. Sabes bem que não tens coragem para fazer nada.
– Não bato em bêbados.
– Aí não? – deu um passo atrás e esmagou-lhe a garrafa cerveja contra a cabeça, partindo-a em pedaços. A cerveja, fervilhando, misturou-se com o sangue e os vidros, salpicando a mesa e as camisas dos homens. Todo o grupo se levantou de rompante, virando a mesa, e empurrando-o para fora do café. Eram quatro ou cinco e Henrique estava bêbado. Bateram-lhe sem piedade.
Dois deles agarraram-lhe os braços, enquanto os restantes, à vez, lhe batiam com os punhos, os cotovelos e os joelhos. Repetidamente. A boca de Henrique ficou ensanguentada, os olhos vermelhos, inchados e lacerados; mas ainda assim parecia sorrir, incitando-os.
Desembaraçou-se à cabeçada de quem o agarrava e pontapeou-os com um sorriso nos lábios, como se de uma brincadeira se tratasse.
Bateram-lhe uma cadeira na cabeça. Perdeu os sentidos. Pontapearam-no enquanto estava caído no chão. Ficou por um minuto desmaiado, enquanto os outros recuperavam o fôlego. O seu sangue infiltrava-se já por entre as pedras polidas da entrada do café.
Arminda, avisada pela mãe, correu escada a baixo e depois pela rua do alecrim, que dava para o largo onde estava o café. Quando aí chegou, já Henrique se levantava novamente.
– Parem! Parem! – gritou, mas a sua voz perdia-se no ar, como se o peito estivesse furado.
Entrepôs-se entre eles e Henrique.
– Parem – disse em surdina. Os seus olhos faiscavam. – Ninguém toca mais nele. Ouviram? Já chega. Não me interessa o que aconteceu. Acabou.
Mas, aproveitando o momento, Henrique investiu de novo contra Raul, tombando-o. Esmurrou-o e um mar de sangue jorrou-lhe do nariz. Mas os companheiros logo o acudiram. Zurziram-lhe novamente. Henrique ria.
Arminda tentou em vão separá-los.
Por fim, atirou-se para cima Henrique, que estava novamente caído no chão, para que não lhe batessem mais e eles pararam.
– Filha da puta! Não sabe quando parar. Vamos embora rapazes. Vamos embora. Se continuarmos aqui vamos matá-lo – disse o Sérgio.
Henrique não conseguia ver nada. Os olhos começavam a inchar e tudo estava desfocado. Cuspiu sangue e dentes.
– Ajudem-me – pediu Arminda. – Tu aí, que lhe vendeste a cerveja!
– Já sabia que ia sobrar para mim.
– Porque é que estás a fazer isto? Deixa-me!... Deixa-me estar – disse Henrique. – Quero descansar aqui.
– Vamos. Vamos levar-te para minha casa.
– Nem pensar. Isso foi o que sempre quisestes. Deitar-me na tua cama e curar-me…
– Não sejas estúpido! Ou ficas aqui mesmo. Os cães que te lambam as feridas.
Levaram-nos os dois em braços até a casa de Arminda. Pelo caminho sossegou, com se tivesse adormecido, ou talvez desmaiado. Arminda continuou a falar com ele, de modo a avaliar o seu estado, mas este deixou de responder.
O filho de Arminda, Gabriel, esperava-os no cimo das escadas.
– Vai para dentro filho. Vai. Ajuda a mãe. Traz-me a coberta grossa e um lençol branco, lavado. Vai. Vai. Despacha-te.
O pequeno fez o que a mãe lhe pedia e depois ficou calmamente a observá-los enquanto o estendiam em cima da cama. Estava sujo e coberto de sangue. Deformado. Se não fosse a camisa e as calças, não julgariam que fosse um homem.
– Vai-te deitar Gabriel. Amanhã tens escola.
– Mas eu quero ficar.
A mãe de Arminda entrou no quarto. Tinha cabelos brancos e vestia de negro.
– Porque o trouxeste para aqui!? Levem-no para o hospital ou chamem o médico.
Não respondeu.
– Toda a aldeia fala, filha. Esse não tem remédio! Porque o queres recolher aqui em casa?
– Então, vá-se embora. Desapareça. Se lhe importa assim tanto o que os outros lhe dizem, saía. Saía!
– Ele precisa de um médico, filha!
– Bem podem chamá-lo. Mas duvido que aqui ponha os pés ainda hoje. Conheço bem o doutor. Não gosta de ser incomodado à hora de jantar. Talvez apareça cá amanhã. Agora tomo eu conta dele. Eu sei o que fazer.
Arminda olhou novamente o filho.
– Tu. Vai-te embora. Deitar.
– Não.
– Então, ajudas-me. Vai buscar água morna. Vamos lavá-lo.
Despiram-no e lavaram-no com uma esponja molhada. Depois desinfetaram as feridas com tintura de iodo. Henrique franzia a cara. Tinha um grande golpe no sobrolho. Por baixo dele o olho estava inchado. Arminda drenou-lhe o sangue como podia.
Deu-lhe alguns analgésicos e colocou-lhe gelo na cabeça e na cara.
Quando acabaram, sentaram-se os dois, mãe e filho, lado a lado, olhando para Henrique, que dormia.
– Mãe?
– Sim, filho.
– Isto é por causa do Daniel?
– Chiu… não fales disso. Isso é assunto de gente crescida. Não te metas.
– Ele está a dormir... Sei que é por isso. Também tenho saudades dele.
A mãe apertou-lhe a cara de encontro ao peito.
– Todos temos.
Fizeram silêncio.
– Eu podia ser o Daniel. E o Henrique ficava outra vez bom. E tu também, mãe.
Arminda engoliu em seco. Pegou-lhe na pela mão e levou-o para a cozinha.
– As coisas não são assim tão simples, Gabriel. Ninguém pode substituir, ninguém.
– São sim – respondeu enfurecido. – Vocês é que complicam.
Foi-se deitar.
Arminda não dormiu. Sentada numa cadeira junto à cama velou pelo doente toda a noite. Henrique gemia. A posição da cadeira não era confortável. Mas Arminda não dormia porque não conseguia deixar de pensar. Estava cansada, mas desperta, incapaz de dormir.
Era quase de manhã quando finalmente cedeu ao cansaço e adormeceu. Um minuto depois, Henrique despertou. Mal conseguia abrir os olhos. Estava tudo turvo e enevoado. Não sabia onde estava. Mas precisava de urinar. Por isso levantou-se lentamente para procurar a casa de banho. Cambaleou até à porta do quarto. Virou-se por momentos e viu que Arminda dormia na cadeira. Devia estar em casa dela.
– Mulher dum raio – murmurou.
Na rua ouvia-se o chilrear dos pássaros à primeira luz da manhã.
Recordou confusamente os acontecimentos de ontem e sorriu satisfeito. Sentia-se bem. Melhor do que na maioria dos dias. Não conseguia pensar em nada. Todo o seu corpo estava presente; todos os nervos excitados.
Urinou sangue. Um sabor metálico, acre, percorreu-lhe o palato.
Parou em frente do pequeno espelho da casa de banho e olhou-se. A janela estava aberta e uma pequena brisa fazia com que o espelho baloiçasse. Viu o seu reflexo disforme aparecer por momentos. Não se reconheceu. Um dos dentes baloiçava empurrado pela língua. Pensou por um momento em puxá-lo.
Arminda ainda dormia.
Procurou as roupas. Queria sair dali rapidamente. Não queria falar com ninguém. Não queria olhar para ninguém. Encontrou a roupa em cima de uma cadeira. Começou por tentar vestir as calças, mas desequilibrou-se e caiu com estrondo.
Arminda acordou e levantando-se num salto acudiu-o.
– Que estás a fazer?
– Cala-te mulher d’um raio! Que não aprendes a não te meter na vida dos outros.
– Filho da mãe. Para a próxima deixo-os matarem-te!
E dito, isto ficou agachada a seus pés, sem o ajudar.
Na posição em que estava, Henrique vislumbrou-se as coxas morenas e bem torneadas. Ela viu para onde ele olhava.
– Vá lá, ajuda-me a levantar – disse ele por fim, quase embaraçado com a sua indiscrição.
– Podes muito bem fazê-lo sozinho.
– Não te devias meter…
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