Antebraço (à deriva)
Estava um dia de muito calor. Foram todos até à praia.
O mar estava azul escuro. As ondas moviam-se lentamente de encontro ao areal.
A água estava muito fria. Não lhe apetecia falar com ninguém.
Sempre o fascinou a aparente impenetrabilidade do mar. Coberto por uma película azul, de reflexos cristalinos, cúmplice do céu, e do sol, reserva-se. A sua profunda escuridão era encantadora. Mas ainda assim era com aparente facilidade que nos acolhia e nos deixava, por momentos, cultivar a ilusão lhe pertencermos.
Entrou lentamente na água e mergulhou. Viu ao longe o chapéu de sol da família. Estavam lá todos deitados em seu redor. Apeteceu-lhe nadar e ficar sozinho. Atravessou a zona de rebentação e continuou. Detestava a espuma e a areia em turbilhão.
Nadou durante alguns minutos. Quando levantou a cabeça e olhou para trás, os chapéus de sol coloridos sob a areia escaldante pareciam uma miragem distante, minúscula. Ouvia apenas o mar, o entrechocar langoroso das suas vagas. Aqui ao largo levantava-se um vento crespo, muito diferente do bafo quente que soprava em terra. Tudo era profundamente azul.
Estava cansado e deitou-se a boiar de olhos fechados. Perdeu a noção do tempo. Não sabia dizer se ali teria estado cinco minutos ou uma hora.
Estava agora ainda mais afastado. A corrente arrastara-o.
Nadou. Os braços e as pernas estavam entorpecidos pelo frio. O próprio coração parecia preguiçoso e a respiração irregular. Parou passados alguns segundos.
Não deveria ter-me afastado tanto, pensava. Já não consigo voltar. A corrente arrasta-me.
Ninguém teria dado pela sua falta? Talvez não se tivessem preocupado. Afinal era bom nadador. E fazia muitas vezes isto. Sempre sem qualquer problema.
Bom, isso não era inteiramente verdade. Já uma vez tivera medo, mas não contara a ninguém. Conseguira por pouco voltar, já esgotado. Quando lhe aconselharam cuidado, desvalorizou a preocupação, acendeu um cigarro, embrulhado na toalha, e prometeu a si mesmo que teria mais atenção; que não voltaria a afastar-se tanto.
Mas hoje não pensara nisso. Duvidava até de si mesmo: tinha-o feito de propósito? Como pudera ser tão descuidado. A verdade é que não estava em si. Há acontecimentos que definem uma vida.
Hoje de manhã, depois de fazerem amor, a namorada disse-lhe que estava grávida. Poderia ter sido um acontecimento feliz, mas nesse preciso instante percebeu que não a amava. Pensou em Cristina, a namorada do amigo. Por momentos foi evidente: estava apaixonado por Cristina. Mas logo depois tudo se misturou e agora já nada lhe parecia claro.
Nadou mais uma vez, desta vez a favor da corrente, que o arrastava para sul, ao longo da costa.
Passou muito tempo. Tudo era azul. A água era fria e o sol escaldante.
A forças faltaram-lhe por um momento e deixou-se afundar. Durou apenas uns segundos. Fez um esforço e veio à tona, aflito. Deitou-se novamente a boiar. O sal ardia-lhe nos olhos, quase cegos pelo constante cintilar do sol na superfície do mar. A pele da cara e dos ombros estava quente, queimada. O esforço repentino provocara-lhe uma cãibra na perna. Tentou esticá-la, era muito doloroso.
Segue a corrente, dizia para si mesmo. Acabará por te levar a algum sítio. Mesmo que não seja onde queres. O único inconveniente é o tempo. Se há algo que define o tempo é a sua irreversibilidade.
Foi encontrado no dia seguinte desmaiado, mas com vida, numa praia dezenas de quilómetros a sul. Já de noite, vira as luzes do casario e nadara com todas as suas forças nessa direção. Foi até mais fácil do que julgara. O mar quase que o cuspira. Morto ou vivo não pertencia ali.
No hospital, todas a visitas o fizeram sentir-se profundamente doente.
Chorou várias vezes, mas ninguém percebeu porque razão o fazia. Nem ele percebia exatamente porque chorava, mas uma profunda tristeza apoderara-se dele. Os seus lábios crestados tremiam a todo o momento, vibrando com a emoção.
Uma película translúcida isolava-o do mundo. Ninguém conseguia ver para além dela. Ninguém poderia, jamais, misturar-se com ele. Ninguém.
A presença de Daniela junto ao seu leito foi triste e langorosa. Ela própria percebia que algo não estava bem e não sabia o que fazer. Mas a curta visita de Cristina e do amigo foi ainda pior. Pois que o azul dos seus olhos, cintilando, fez-lhe lembrar o rebrilhar do sol no mar.
Quando saiam, Cristina ficou para trás, e segurou-lhe a mão por momentos, quando ninguém via. Os seus olhos cintilaram novamente como gotas de luz e os seus lábios pronunciaram em silêncio: também te amo. Quase em reflexo ele passou-lhe a mão pelo antebraço, numa carícia, desde do cotovelo até ao pulso.
O velhote da cama ao lado sorriu. Daniela e o amigo, que voltavam a trás, também viram. Aquele gesto interrompeu-lhes o movimento. Quedaram-se mudos.
Comentários
Enviar um comentário