NÃO SAÍ DA MINHA NOITE, ANNIE ERNAUX (Tradução: Tânia Ganho)



Annie Ernaux publicou, a par de algumas das suas obras de autoficção, os excertos diarísticos correspondentes a esses períodos e acontecimentos. Estes diários têm recentemente vindo a ser traduzidos e editados em Portugal: ‘Perder-se’, diário que corresponde os acontecimentos narrados em ‘Uma paixão simples’; e este ‘Não saí da minha noite’, a que corresponde ‘Uma mulher’, narrativa que se inicia depois da morte da mãe, momento em que termina este diário, mas que incide sobre o período anterior. Em ambos os casos, a escritora optou pela transcrição não editada dos diários, procurando conservar o que de distinto havia no seu carácter, face às obras ‘irmãs’, que resultam de um pensamento ulterior, necessariamente mais burilado. No caso do par ‘Uma paixão simples’ / ‘Perder-se’, apesar de achar notável o diário, a ‘Paixão’ é na minha ótica superior, pois resolve com competência literária a natureza repetitiva da narrativa. No presente caso (‘Não saí da minha noite’) não posso fazer esta mesma comparação, porque ainda não li a narrativa ‘irmã’ (Uma Mulher). No entanto, posso atestar da relevância deste extrato do diário.

Num primeiro momento, pensei que era incrível que estas fossem entradas não editadas de um diário. Depois, percebi que era exatamente isso que as tornava relevantes. Não só não tinham sido editadas, como a autora procurara que fossem escritas de forma repentista, quase como a escrita automática preconizada pelos surrealistas, como meio de contornar a autocensura. Tal propósito é indicado pela própria autora:

“Quando escrevo estas coisas, escrevo-as o mais depressa possível (como se fosse errado) e sem pensar nas palavras que uso. Hoje, ela vestia um roupão às flores, o tecido estava cheio de fios puxados pelo uso. De relance, a minha mãe pareceu-me coberta por uma pelagem de animal.”

Esta atitude resulta, não só, num relato em que as emoções da autora são escrutinadas (como é hábito) de forma desapiedada, ultrapassando qualquer pudor ou autocensura, mas também conferindo à narrativa uma qualidade entre o onírico e o espectral, como se houvesse (e de facto, em certa medida, houve) uma suspensão da vida e do próprio tempo. Balançamos, como a autora, entrando e saíndo intermitentemente deste mundo, que se reveste de um carácter surreal – não querendo com isto dizer que os acontecimentos não sejam reais, mas sim que a perspetiva é mais do que isso, justapondo-se à realidade. Senão vejamos:

“No hall do rés do chão, está sempre um velho de pijama desejoso de fazer um telefonema. No outro dia, mostrou-me um número num papel. Marquei os dígitos para ele falar, era o número errado. O dia inteiro, ele quer falar com alguém, talvez um dos filhos, ou uma entidade qualquer. Esperançoso, todas as manhãs.” 

“Hoje, ela não percebia nenhuma pergunta. «Dormes bem?» «Sim, sim, está limpo». Contou ao pormenor tudo o que fez desde manhã, compras em lojas, havia demasiada gente, etc., como se levasse uma vida normal. Esta pujança da imaginação, para com pensar. E, depois, em última instância: «Tão cedo não saio desta porcaria.»”

“Agora visito-a ao domingo. Na televisão, está a dar L'école des fans, de Jacques Martin. Cantam umas crianças. Os velhos observam. Quando entrei com a minha mãe no quarto, um cheiro insuportável a merda sufocou-me. Sentámo-nos cara a cara. A outra mulher guinchava, como é hábito, «um bolo, por favor». Ninguém a visita. Ao aproximar-me dela, vi um enorme monte de merda perto da cadeira. Chamo a auxiliar de serviço e ela garante-me que não foi nem a velha que está de fralda - nem a minha mãe quem fez aquilo. Parece que há um velho que entra nos quartos e faz a sua encomenda no chão.”

“Hoje, fui visitá-la com o Éric. Estava na entrada, a tatear um cano na parede. Reconheci-a pelos sapatos. A vizinha de quarto passeava-se, com este calor, de casaco de peles, a carteirinha na mão, como uma puta velha.”

“«Por fim estão reunidos» (o meu pai e ela), «ela descansa». Estas frases que não compreendo, que não me tocam, mas talvez seja preciso pronunciá-las. No talho, hoje de manhã (da última vez que lá fui, era «antes»), a lentidão das pessoas a escolherem minuciosamente este ou aquele pedaço de carne. Que horror.”

Sobre o tempo e a sua suspensão:

“Para mim, ela é o tempo. E também me empurra para a morte.

“A maior parte das vezes, não penso em nada, estou junto dela, é só. Existe para mim, sempre, a sua voz. Está tudo na voz. A morte é, acima de tudo, a ausência de voz.

“Tinha aceitado que ela voltasse a ser uma menina, mas ela não crescerá. Pela primeira vez, compreendo o verso de Éluard «o tempo transborda».

Paul Éluard é um dos poetas do surrealismo francês.

No que diz respeito à habitual autoanálise desapiedada é relevante o sentimento de culpa, cortante de cada vez que a porta do elevador se fecha sobre o rosto da mãe

“Mais uma vez, tento entrar no elevador e pô-lo em andamento antes que ela venha ter comigo e que as portas se fechem sobre o seu rosto. Esta dor, o tempo todo.”

a natural inversão de papéis mãe-filha, em que a filha assume agora, para seu próprio horror, um certo sadismo que experimentou enquanto criança

“Cortei-lhe as unhas, ela gemia, apesar de eu tomar todas as precauções para não a magoar. Sinto-me sádica, como ela era antigamente comigo. Ainda me odeia.”

“O meu sadismo horroriza-me. Obriguei a minha mãe a vestir o corpete, as meias. Ela aperta o corpete com gestos desajeitados. (…) O meu sadismo de hoje transporta-me para o da minha infância, com as outras meninas. Sádica talvez porque ela me aterrorizava.”

O livro, muito condensado (ao contrário de ‘Perder-se’), é fácil de citar e poderia ocupar aqui mais uma página ou duas nesses preparos, como quem aparelha um equino. Ernaux mantém sempre a sua prosa bem afiada, qualquer encosto faz sangue.

Em perspetiva, fez-me lembrar outras leituras, embora conceda que as ligações não sejam evidentes e manifestamente exageradas: ‘Em baixo’ de Leonora Carrington, pela componente surrealista; os ‘Diários, 1950-1962’ de Sylvia Plath, em particular os relatos das sessões com a sua psiquiatra, Ruth Beuscher, um momento absolutamente ofuscante, em que a sua relação com a mãe é decantada. Por outro lado, em ‘Perder-se’ desenha-se um triângulo entre desejo, vazio e escrita, em que o desejo que a impele para além da razoabilidade para o amante, é o mesmo que a arrebata para a escrita, num jogo em que não se nega a nada (“Não importa onde, não importa quando, podes pedir-me o que quiseres e eu dou, faço seja o que for por ti.”). Há em ‘Perder-se’ uma dupla desrealização, conceito muito prezado entre os surrealistas: a do objeto desejado (o amante) que adquire uma dupla face; e um esvaziamento do sujeito, que se constituí também como objeto de desejo. Paradigmaticamente, na pintura de Dali, é negado aos objetos a sua essência para se possam oferecer ao sujeito – os relógios moles, por exemplo, excluem a possibilidade de qualquer mecanismo funcional de relojoaria – já não são relógios. Qual o objeto do desejo neste livro? A mãe? A reconciliação com a mãe? O confronto com o seu próprio envelhecimento, decadência e morte? A sobrevivência da mãe separa Annie da própria morte. A idade adulta só chega quando se processa a curiosa inversão de termos de cuidar dos nossos pais. O tempo que transborda para além dos seus limites perante o profundo desgosto da perda, que torna inútil toda a literatura: “Todas as manhãs saio da sua morte”.

***   

PS: a ligação de Ernaux ao surrealismo e suas influências não é evidente, mas após algumas pesquisas encontrei referências a trabalhos e entrevista da autora sobre o assunto

“Ernaux’s studies soon took her back to the capital: she was writing a dissertation on women in Surrealism, so travelled to the Jacques Doucet library, one of the rare places where readers could consult journals like “La Révolution surréaliste” and “Littérature” or first editions of André Breton’s “Nadja” and “L’Amour fou” at a time when Surrealism lay dormant, awaiting a revival in interest come 1968. At first glance, the parallels between Surrealism’s clashing imagery and its preoccupation with the unconscious, and Ernaux’s matter-of-fact style and concern with lived experience, are not readily apparent. What was it about Surrealism that attracted Ernaux, and how did this early interest influence her later work?  She explains: Surrealism was a literary movement that fascinated me because it was both a literary revolution – in poetry, automatic writing, a whole ensemble of things – but also always had a political content, especially at the beginning. I wanted to apply this to my own writing in a way, both in terms of the political meaning and, at the same time, in the pursuit of new forms.” 

https://daisysainsbury.com/2019/11/18/annie-ernaux-interview/

Referências:


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