APRENDER A REZAR NA ERA DA TÉCNICA, GONÇALO M TAVARES


Já ouvi, por diversas vezes, descrever o escritor Gonçalo M. Tavares como cerebral – ou muito cerebral – o que parece constituir uma crítica velada, que não se assume realmente, e que rapidamente recua e se transforma num elogio dependendo da reação da audiência. É difícil, assumem. Embora verdadeiro, este epiteto, é pouco preciso, inexato, insuficiente. Até porque parece sugerir uma insuficiência a nível emocional que não é rigorosa. Por outro lado, Gonçalo M. Tavares (GMT) tem genuínos e até incondicionais admiradores, embora seja difícil discernir mais do que a merecida admiração.

Reli agora o livro ‘Aprender a rezar na era da técnica’. Tendo lido e gostado da tetralogia ‘O Reino’, onde se inclui este último, há bastantes anos, tinha uma memória pouco especifica: pouco mais do que uma impressão, que importava agora especificar. A abordagem de GMT a este livro é mais do que cerebral, é puramente mecânica. Articula permanentemente, numa malha feroz, conceitos, como uma dança ou luta de válvulas e bielas, usando personagens e enredo como meios de os representar. Força, medo, velocidade, técnica, natureza, doença, ataque, defesa, mal, razão, compaixão, poder, morte, biblioteca. Todo o livro é a articulação bastante precisa e eloquente destes conceitos, numa dialética (luta) que não está isenta de emoção. Aqui reside, na minha opinião, o equívoco da crítica velada acerca da cerebralidade da escrita de GMT. Toda a dialética (de facto uma luta) é plena de emoção e usa imagens fortes, até mesmo perturbadoras. A escrita é, de facto, mais instintiva e fragmentária, do que pensada – cerebral. Lenz Buchmann é o anti-herói amoral da era da técnica, que procura o domínio sobre o mundo, sem qualquer outro objetivo que não a prevalência desta força. O homem que age sobre os objetos, mas que é traído, não só pela doença, mas sobretudo pelas suas pulsões mais primárias, como no seu fascínio pelo louco Rafa, em que o medo age sobre ele; ou quando se deixa masturbar por Julia.

O livro, escrito com uma enorme economia, é muito denso, com inúmeros pontos de análise e interpretação, embora nem todos passíveis uma racionalização, sendo por vezes apenas focos de inquietação – como em toda a arte. Gostaria, contudo, de aprofundar um aspeto que me parece central.

Lenz Buchmann é o herdeiro e guardião da biblioteca do pai. A origem etimológica deste apelido, tão prevalente ao longo do livro, revela-nos essa premeditação e importância – não me parece constituir uma casualidade, especialmente se a corroborarmos com outros factos. Buchmann é um apelido de origem alemã e/ou judia Ashkenazi, composto por duas partes: Buch, livro; e mann, homem. Lenz anseia pela morte do irmão Albert, sobretudo porque lhe permite recuperar a outra metade da biblioteca do pai, que o irmão começara já a perverter, e que ele limpa e continua. Quando o próprio Lenz fica doente, e ao cuidado dos filhos do homem que seu pai matara na guerra, Leignitz, tranca a sua biblioteca e deixa a chave secretamente junto do túmulo do pai, para a proteger. A biblioteca é de facto, também um símbolo da técnica e da força, face a um inimigo sempre vigilante, sempre a reunir forças, que é o meio natural, indiretamente representado pela doença e a morte, como signo da desorganização celular. A biblioteca é o domínio sobre o meio natural, e sobre os outros homens; uma forma de imortalidade, que dispensa a descendência – embora este aspeto espelhe uma individualidade grotesca (a importância de Lenz ser o único e último Buchmann). Mesmo na hora da sua morte, derrotado pela má calculada ausência de forças, que o impede de se suicidar, como o seu pai, e traído por Leignitz, não se coíbe de tentar cuspir na cara do padre. Lenz recusa a oração, mas realmente não passa de um moribundo que se baba, sendo o seu queixo prontamente limpo por Julia. No último momento, a luz forte da televisão, outrora odiada, mas finalmente tranquilizadora, chama pelo seu nome: Lenz Buchmann, Lenz Buchmann, Lenz Buchmann – uma oração solipsista, na era da técnica; e a televisão, o deus da nova era.

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