SEI PORQUE CANTA O PÁSSARO NA GAIOLA, MAYA ANGELOU (Tradução: Tania Ganho)

 


Já ouvi dizer: a autoficção (e por maioria de razão, toda a escrita de natureza autobiográfica ou memorialista) é limitada no seu alcance… que só pode chegar até determinado ponto… que do ponto vista literário é preciso ir mais além, sair da experiência individual, e projetar não sei quê. Parece-me uma opinião idiota, que se constitui por mero movimento de oposição à recente popularidade do género. Da mesma forma, seria obtuso defender o contrário: que a autoficção, ou escritos de natureza autobiográfica, teriam um valor literário intrinsecamente superior.


Podem dizer-me: mas nem toda a gente tem uma vida suficientemente interessante, que valha a pena partilhar. No entanto, o interesse literário (ou qualquer outro) depende mais do ponto de vista, do olhar, do ângulo, do que daquilo que possa ser factualmente interessante. Uma história é exatamente isso: um ponto de vista, que ordena e liga, fornece uma intenção – daí a necessidade imperiosa dos indivíduos, famílias ou grupos construírem uma narrativa. Assim, vidas potencialmente interessantes, podem volver-se literariamente inúteis ou desastradas. Da mesma maneira, sem a intuição do ângulo certo, qualquer ficção se transforma num tubérculo mutilado por uma enxada desastrada.

‘Sei porque canta o pássaro na gaiola’ parte da experiência individual e, sem nunca dirigir o leitor (sem lhe dizer o que deve pensar), constrói uma experiência coletiva. Fá-lo contando a sua história com uma grande densidade e complexidade emocional, com desvelo, e, sobretudo, com sentido poético aspiracional. Para um leitor já distante, como é o meu caso, esta leitura constitui uma viagem a um país longínquo. Há ainda, hoje e aqui (ou ali), racismo, segregação, misoginia, mas estamos a falar de um mundo diferente. E este livro ajudou a construir essa diferença. Porque o canto do pássaro na gaiola não é um lamento ou um pedido de ajuda; é tudo o que persiste apesar da gaiola (como o mote do seu poema: And still I rise). E esta é também a história da procura dessa mesma voz, desse canto, dessa agência. 

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