PERDER-SE, ANNIE ERNAUX (TRADUÇÃO TÂNIA GANHO)



‘Perder-se’ contém a transcrição dos diários de Annie Ernaux entre setembro de 1988 e março de 1990, período em que manteve uma relação amorosa com um diplomata russo. Essa relação já havia sido retratada no livro ‘Uma paixão simples’, publicado originalmente em 1991. Estes diários foram publicados mais tarde, em 2001, revelando, segundo a autora, um carácter distinto de ‘Uma paixão simples’, que justificava a sua publicação: “Algo cru e negro, sem salvação, uma espécie de oblação”.

Feitas as apresentações, mapeado o norte e o sul, vamos então conversar (com o texto). Sendo ‘Uma paixão simples’ um objeto literário absolutamente depurado, que roça a perfeição, as minhas expetativas acerca do que iria encontrar num diário não editado, que versa sobre o mesmo tema, eram conservadoras. Mas Annie não será deste mundo: a elegância (crua) com que se despe perante os nossos olhos é quase sobrenatural. Dentro das limitações que a escrita de um diário impõe (naturalmente à queima-roupa, potencialmente repetitiva, sem nexo predeterminado) o resultado é notável, constituindo sem dúvida um objeto literário. O carácter repetitivo do diário, que neste caso seria impossível obviar sem proceder a cortes, foram magistralmente resolvidos logo no início de ‘Uma paixão simples’ com pouco mais de uma frase: “A partir de setembro do ano passado, não fiz mais do que esperar um homem: esperar que ele me telefonasse e viesse a minha casa”. Este é um elemento que prejudica a leitura (se o compararmos com o romance), mas depois temos Annie (que não é deste mundo) e tudo o resto que nos oferece…

O diário é de um erotismo delicioso – de tudo, isto é talvez o mais difícil. Annie escreve sobre si própria de uma forma desapiedada, num ato de esvaziamento. Desenha-se um triângulo entre desejo, vazio e escrita:

“Enfim, eu, eu amo-o com todo o meu vazio."

“O que há de terrível é que, antigamente, eu procurava um homem para me «estabilizar», ter uma fraternidade. Agora, procuro-o unicamente pelo amor, isto é, o que mais se parece com a escrita, pela perda de si mesmo, a experiência do vazio preenchido.”

“Esta necessidade que tenho de escrever algo perigoso para mim, como a porta de uma cave que se abre, onde é preciso entrar, custe o que custar.”

O império absoluto do desejo:

"Choro de desejo, desta fome absoluta que tenho dele."

"Antes de ele vir, precipitação, indiferença ao que possa acontecer de material (partir um objeto precioso, por exemplo), às obrigações (escrever cartas, etc.), porque a única coisa que importa é o desejo. Antigamente, ao voltar à realidade, eu perdia as ilusões, sentia-me triste, espantava-me com a precipitação que não me levara a lado nenhum, uma vez que o desejo saciado se revelava um vazio. Agora, aceito, desfruto até, destes dois tempos. Vejo o tempo do desejo, retilíneo, e o tempo do desaparecimento do desejo (estou sozinha, arrumo), sem objetivo, difuso (a melhor prova: escrevo sobre isso aqui)."

Vigiado por uma pulsão de morte, um caminhar para o fim inexorável e conhecido:

“Esta necessidade de homem, que é terrível, próxima do desejo de morte, da minha obliteração, até quando..."

"Pela primeira vez, confronto a minha total falta de valor: viver sem escrever, na expectativa de encontros, que são uma terrível descida para a morte."

“E é esta constatação que me parece pavorosa. A verdadeira vida está na paixão, com o desejo de morte. E essa vida não é criativa.”

Este desejo, talvez a palavra mais frequente destes diários, não pode ser encarado apenas como um desejo físico. Ou, inversamente, não se pode conceber a paixão como sendo outra coisa que não este desejo que arranca lágrimas – são aqui sinónimos. Trata-se de um ciclo de antecipação, mácula e memória. Os corpos confundem-se e deixam memória, o amante adquire uma dupla face:

"Como todas as noites em que ele veio ter comigo, não durmo, continuo dentro da sua pele, dentro dos seus gestos de homem."

"Não posso dizer que os homens me perdem, o que me perde é o meu desejo, a submissão a (ou a busca de) algo terrível, que não compreendo, nascido da união com um corpo, e que desaparece imediatamente."

"O desejo que não se esgotou, pelo contrário, renasce com mais dor, mais força. Já não sei de cor o rosto dele quando não está presente. Mesmo quando estou com ele, já não o vejo como antes, tem um rosto diferente, tão próximo, tão evidente, como um duplo."

"Toda a minha vida tem sido um esforço para me arrancar ao desejo do homem, isto é, ao meu. Em 1963, eu repetia as palavras bíblicas para mim própria: «Farei escorrer sobre ela a paz como um rio», sem saber sequer que essas palavras queriam dizer o meu desejo, o esperma escorrendo sobre mim como um rio."

Num dos últimos encontros, apesar de todas as esperas, de toda a dor, de todo o ciúme, mas também de todo o desejo, Annie promete ao amante o mesmo que terá porventura prometido à escrita, como signo da sua paixão e esvaziamento totais:

“«Não importa onde, não importa quando, podes pedir-me o que quiseres e eu dou, faço seja o que for por ti.»”

O maior luxo é este (com que termina ‘Uma paixão simples’):

“Quando eu era criança, para mim o luxo eram casacos de pele, vestidos compridos e vivendas à beira-mar. Mais tarde, pensei que fosse ter uma vida intelectual. Agora parece-me também que é poder viver uma paixão por um homem ou por uma mulher.”

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