UMA ABELHA NA CHUVA, CARLOS DE OLIVEIRA

 


Carlos de Oliveira é brilhante no uso linguagem, de um apuramento notável, e não menos na composição. Na análise deste romance, devemos, como diz o Dr. Neto (personagem do dito), partir do real e concreto, para o abstrato e complexo. Neste caso, partir da pequena comunidade de Montouro para uma caracterização da sociedade portuguesa no tempo do Estado Novo.

Silvestre (pequeno burguês, gordo, indolente e covarde) casou com Maria dos Prazeres (filha de fidalgos decadentes e falidos). Maria dos Prazeres é a abelha rainha e o motor de uma colmeia bem pintada por fora, mas putrescente e disfuncional por dentro – alimentando-se de ressentimento produz apenas fel. Maria dos Prazeres vive um vazio impossível de preencher: reduzida a uma pequena burguesia soturna e canalha, cambaleante na sua mesquinhez, cheia de remorsos fingidos; no quarto gélido, a sua sexualidade reprimida (função primordial da abelha rainha) lateja: pelo cocheiro Jacinto; e mesmo na admiração pelo cunhado que foi para as colónias espremer pretos e pretas.

António (o oleiro cego, que virou santeiro) e Marcelo (o seu ajudante) matam Jacinto, o cocheiro de Silvestre, incitados este. Mas a origem deste crime não foi a honra ofendida de Clara (filha de António, amante de Jacinto de quem carregava um filho). Foram os ciúmes de Silvestre acerca dos olhares lúbricos que Maria dos Prazeres lançava inadvertidamente ao cocheiro. Pior do que os olhares, o desvelo com que Jacinto, conversando com Clara no palheiro, ridicularizavam a sua falta de vigor sexual.

Jacinto e Clara são as únicas personagens deste romance que têm uma vitalidade pungente. São elas as abelhas obreiras, as abelhas boas – abatidas por pingos de chuva morrem, assim como o seu filho por nascer. Estas produziam o mel que todos os outros transformavam em fel.

A caracterização de António (Salazar) e Marcelo (às vezes Marcelão) como meros instrumentos na mão de uma pequena burguesia canalha, falida e desesperada, que não fode nem deixa foder, poderá ser surpreendente. Uma pequena burguesia que, por sua vez, não tem sequer a nobreza de assumir os seus atos, e que repousa a sua consciência numa aristocracia silenciosa, a rainha que ninguém vê e a que já ninguém pode atender.

A sociedade portuguesa mudou muito ou pouco, desde então? É com certeza mais aberta e plural. Mas quanto do que aqui é descrito não se poderá identificar ainda hoje?


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