MÚSICA
Escuta. Ouves este ruído? São as máquinas. Estão
a fazer uma espécie de música. Ouve o zunido. Tem uma modulação. Ainda ontem, as
bombas hidráulicas dispararam a meio da noite. Não te deixes enganar pela elipse
dos seus baques, é apenas demasiado longa para que possas perceber a sua
sequência, o seu ritmo aparentemente caótico.
Olha para este mostrador. Os dígitos curvam. Parece que são dotados de emoção. Contém uma impressão, não são apenas eletricidade. Que lânguido é o seu halo, como um sorriso gótico.
Também os objetos inanimados cantam. Ouve. A sua
desconstrução é uma valsa.
Parece que não estamos sozinhos, meu amigo. Há vida inteligente. Vida inteligente. Aqui mesmo, entre nós. E a música é a prova disso.
Hoje ao almoço, no restaurante, o tinir sincopado dos talheres de encontro aos copos parecia a abertura de uma grande sinfonia, que a todo o momento ameaçava despontar. Uma pequena frase parecia brotar dos seus lábios obtusos, inanimados.
Por outro lado, as vozes das pessoas, sobrepostas num burburinho ininteligível, soavam a holocausto. Diziam: está tudo perdido, está tudo perdido... São a voragem que passa e queima. A colmeia um segundo antes da morte da rainha.
Mas ficará bem entregue, meu amigo. O mundo, meus senhores, não acabará. Porque há música nos êmbolos. E o falsete da correia é perfeito. Cantam como o sol e o vento. Como uma pedra branca ao luar. Como as folhas das árvores escorrendo luz negra numa noite de agosto. Assim, como só as coisas premeditadas sabem fazer.
Havendo música, tudo parece ter mais propósito. Na sua ausência pressentimos que algo não está certo, que é disparatado. Talvez seja por isso que procuramos o seu conforto.
A música é o único argumento a favor da existência de Deus. Foi o seu único carinho para connosco.
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