DOENÇA
Medieval. Tudo o que sabemos acerca da doença é absolutamente medieval. Nada nem ninguém compreende o seu funcionamento. Seria mais humano se os fuzilássemos a todos de encontro a uma parede. Claro que nada aprenderíamos nesse caso. Continuariam a morrer. Morreríamos todos. Portanto, experimentamos insistentemente; não há tempo a perder. Mesmo os procedimentos ineficazes são repetidos, pois precisamos de ter a certeza de que não funcionam.
A doença (assim simplesmente designada por desdém a todas as outras) governa toda a nossa vida. Obcecamo-nos, durante anos, em erradicar todas as insignificantes maleitas que nos apoquentavam, como se a morte fosse uma obscenidade, e tudo o que impedia a nosso domínio sobre o mundo natural um obstáculo. Multiplicamo-nos sem controlo, como uma praga. Mas todos os desequilíbrios tendem a ser eliminados. Todo o desequilíbrio é uma nova oportunidade. Uma oportunidade para a doença. E agora era acerca da doença que tudo orbita; era para ela que vivíamos.
Durante muito tempo foi um desafio intelectual. Mais do que tudo queria vencê-la. Era para isso que nos treinavam. Pouco me interessavam os mortos. Pouco me interessava o sofrimento. Era um simples quebra-cabeças…
Depois a minha mulher ficou doente. Foram-me retirados todos os privilégios médicos. Fui proibido de intervir no seu tratamento, e em qualquer outro. Aos novos médicos já não se colocam tais questões, pois é lhes exigido o celibato.
A minha mulher, que era uma companhia distante e ignorada, tornou-se subitamente próxima, talvez pela visita da própria doença. Tornou-se interessante, mas não ao ponto de não sentir por ela empatia – talvez fosse apenas e só uma recordação da nossa juventude que me movia e aproximava dela.
Sabia bem demais que nada havia a esperar senão uma morte digna, sem tortura ou degradação. Implorei para que não a tratassem. Mas não era possível abrir exceções. Criaria um precedente pouco recomendável.
– Imagine que agora toda a gente vinha reclamar o direito ao não tratamento. Seria o fim. Puro egoísmo se me permite.
– Porque não a incluem num grupo de controle, administrando-lhe apenas um placebo?
– Caro colega (permita-me que ainda o trate assim), sabe bem que os grupos de controle já há muito foram abolidos. Não há tempo a perder. Precisamos de experimentar duas ou três variações dos fármacos em cada ensaio.
– Peço-lhe encarecidamente senhor diretor. O senhor também tem mulher e filhos. Seria capaz de os submeter a estes tratamentos?
Após numerosos requerimentos, e por especial consideração para com os meus serviços passados, consegui que a incluíssem num ensaio com grupo de controle. O protocolo exigia que tanto médicos, como doentes, desconhecessem a que grupo pertenciam. Não havia garantias, apenas uma boa hipótese de uma morte digna.
Fiquei contente, quando observei que a minha mulher não tinha nenhum dos efeitos secundários geralmente observados. Ficara no grupo de controle; tomava apenas um placebo.
Claro que nunca me irei perdoar.
Alguns dos outros pacientes do ensaio começaram a ter melhorias extraordinárias. Mas não a minha mulher. Acompanhara demasiados ensaios para não o perceber. Sem que nada o pudesse prever, haviam encontrado a cura.
De novo implorei. Desta vez para que a transferissem para o outro grupo, para que lhe administrassem o novo fármaco.
– O protocolo tem que ser seguido. Estamos demasiado perto para deitar tudo a perder, percebe? Que garantia tem o senhor que lhe estejam a administrar de fato o novo fármaco? Que garantia temos nós de que não sejam os doentes a quem está a ser aplicado o placebo que estejam a melhorar?
Por receio que colocasse em risco a ordem pública prenderam-me. Caso começasse a circular a notícia de que havia uma cura, esperava-se o caos.
Comunicaram-me que a minha mulher morreu enquanto eu estava na prisão, em isolamento.
Acima de tudo estava a doença. O poder que proporcionava não poderia ser delapidado. Suponho que a cura nunca foi anunciada, pois nunca mais me foi permitido falar com ninguém.
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