Tutano (Alfabeto Global - Jornal de Leiria)
Quando, passado um ano,
chegávamos para mais um mês de férias, era sempre o Roque que nos vinha saudar
à entrada do bairro. O velho cão não se esquecia de quem erámos, ainda que não
nos visse há um ano. Também ficávamos contentes de o ver, admirando a astúcia
com que negociava o câmbio dos seus anos de cão.
O carro onde viajávamos, um Ford
Escort branco, ajoujado por colchões e outra parafernália de veraneio, não
estava para rallies. Nesse tempo de guarda-lamas de ferro, tudo era pesado. Mas
o ar fresco daquelas manhãs de sombras distendidas era tão leve que sustentava
tudo alguns centímetros acima do chão. Havia tão pouco dinheiro nos bolsos que
as pessoas pareciam borboletas.
Era assim, com esse espírito, que
saltávamos do carro e seguíamos por um carreiro estreito, ladeado por muros de
tijolo tosco, sem reboco, percorrendo um labirinto desordenado de casas com
solidez variável, feitas com o que por ali encalhara: pedaços de madeira, pneus
velhos, conchas e búzios. Era ali que viviam os nossos primos (oito irmãos) e
era também num desses quintais, num meandro arenoso, que montávamos a nossa
tenda e passávamos as nossas férias. Cancun com esteroides.
Esta família, os nossos primos Benevides,
era um tumulto disfuncional. Riam, choravam, gritavam, batiam – estavam afinal
vivos e amavam. Não vivendo na miséria, pois comida não faltava, o dinheiro era
contado para leite e carcaças e não esticava para sobejos. Por exemplo:
bronzeador. E embora não houvesse défice de melanina, pois o calção de banho
era o uniforme instituído, todos pugnavam por um bronze perfeito. Ainda agora
começavam as férias, e já a prima Rita, a mais velha, ostentava um bronze do
outro mundo! Tisnada, como se tivesse passado seis meses em Copacabana, a prima
partilhou o segredo: um bronzeador caseiro!
Entre as pessoas leves (as
borboletas) não há nada mais sedutor do que extrair valor a partir de nada: não
era preciso comprar bronzeadores caríssimos, se meia dúzia de ingredientes
caseiros faziam ainda melhor. Em troca de trabalhos domésticos, o meu irmão e o
primo Marco, obtiveram a receita: óleo fula, sumo de tomate, cenoura se houver,
e um pouco de coca-cola – o ingrediente secreto. O óleo e os tomates
subtraíram-nos da cozinha sem que ninguém notasse. As cenouras eram precisas
para a sopa, pelo que não arriscaram. Percorreram as mesas dos cafés a recolher
restos de coca-cola e juntaram tudo num pequeno frasco. Barraram-se na mistela
e deitaram-se no terraço à espera que fizesse efeito…
Ao fim do primeiro dia, constataram
uma falha óbvia na receita: o óleo de fritar batatas e o tomate, depois de umas
horas ao sol, emitiam um cheiro fastiento. Atiraram uns baldes com água pela
cabeça e o aparente bronze foi também por água abaixo. Estavam apenas
vermelhuscos. Mas não desistiram. O Marco teve uma ideia: a água-de-colónia da
mãe. Foram até ao quarto e despejaram a água-de-colónia no frasco de bronzeador
caseiro, substituindo-a depois por água. Perfeito! Ninguém daria conta.
Subiram novamente para o terraço
e besuntaram-se com a cheirosa mistela.
Quando se juntaram à mesa para o
almoço, tresandavam. A água-de-colónia barata misturada com o bronzeador
caseiro adquirira um furor de guerra química, que fez o velho Roque (que roía
um osso) erguer as orelhas e fungar; e a mãe Isabel bufar de fúria,
perseguindo-os de chinelo em punho. Nesse dia, a corrida em direção ao mar, que
muitas vezes se seguia ao almoço, enganando o início da digestão, foi
antecipada. Marco e o meu irmão voaram de pé descalço sobre dunas e chorões,
toalhas e chapéus de sol, e mergulharam no mar. Se tivessem estendido as asas
brancas e efetivamente voado, não me surpreenderia. Ofegantes, deitaram-se
depois nas dunas, sobre a areia, vendo o pequeno comboio de praia passar,
juncado de turistas.
Nesses tempos, o desejo não tinha
ardil. E os deuses não condenavam os mortais pela sua ambição desmedida. Ao
contrário do que haviam feito a Tântalo, condenando-o para toda a eternidade a
ter por perto aquilo que o seu desejo depressa arrepiava, concediam aos rapazes
o frenesi amoroso que atrai sobre si a água fresca e os frutos maduros. Nesses
tempos, as crianças eram deuses e sugavam o tutano da vida.
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