P

Em toda a sua vida, P não tomou uma única decisão. Evitou sempre, a todo o custo, qualquer tipo de confronto. Talvez por isso, toda a gente gostava imenso dele. Era um amigo excecional. Sempre interessado e prestando-se a tudo. Amigos que nem sequer escolhera, mas que simplesmente lhe calharam. Tal como a namorada, que o escolheu a ele, e o achou muito cómodo. Casou com ela e permaneceu-lhe sempre fiel. Sem perceber como, teve dois filhos. Após frequentar um curso que levianamente lhe sugeriram, aceitou a primeira proposta de trabalho que recebeu. Um trabalho entediante, sem qualquer reconhecimento, e de escassas contrapartidas. Mas nem por isso o abandonou esse trabalho. 

Claro que, quando, pela primeira vez, resolveu tomar uma decisão, toda a gente pensou que enlouquecera. 

De repente, nada fazia sentido. Portanto, por raciocínio lógico, pareceu-lhe que devia alterar tudo. 

É claro que, seria injusto censurar a reação da mulher, dos amigos ou do patrão. Espera-se que as pessoas tenham um comportamento previsível. As pessoas devem mudar lentamente. De preferência devem dar sinais dessa mudança gradual. Desse modo, todos poderemos ajustar as nossas expetativas. Talvez P tenha levado a cabo um lento processo de mudança interior. Mas isso é pura especulação. Para um observador externo, tal seria impossível de perceber.

O facto é, que um dia, depois de almoçar, se recusou a pagar a conta e saiu sem aviso do restaurante. Foi ao escritório e notificou o patrão de que não estava interessado em trabalhar mais – cessava funções com efeito imediato. Foi depois até casa, arrumou uma mala com meia dúzia de peças de roupa, e despediu-se laconicamente da mulher.

– Onde pensas que vais?
– Não sei.
– Estás doido!?
– Penso que não.
– Pousa essa mala e volta para dentro.
– Não posso.
– Porquê?
– Tenho que ir fazer uma coisa.
– O quê?
– Ainda não sei bem.
– Não sabes bem!?

O veredito foi que estava doido. Agindo em consequência, a sua esposa requereu um internamento compulsivo. Claro que isso não era possível de realizar de um dia para o outro. Era primeiro necessário determinar que P estava realmente doido. Entretanto, telefonou a todos os amigos e pediu-lhes que o chamassem à razão – sem sucesso. Telefonou também ao patrão do marido e agradeceu desde logo a sua máxima compreensão nesta situação tão delicada. Tudo não passava de um mal-entendido, de uma confusão. Algo de extemporâneo, mas também momentâneo. Descobririam certamente o que se passava com o marido e logo tudo voltaria a entrar nos eixos.

– Posso contar com a sua compreensão, Sr. Henriques?

– O seu marido sempre foi um funcionário exemplar. Chame-o à razão. Talvez precise de umas férias… Mas isto não se faz. Nunca, em toda a minha vida profissional, me havia sucedido um caso destes. Nem sequer arrumou a papelada que tinha em cima da mesa. Deixou um relatório importantíssimo a meio – um relatório que tive eu próprio de terminar. Nunca na minha vida, minha senhora! Ainda me lembro da expressão na cara do seu marido. Tinha um sorriso imperturbável…

– Está doido, é o que é – murmurou a mulher. – Não se preocupe Sr. Henriques. Logo, logo, irá recuperar. Com certeza que vai. Ainda lhe vai fazer imensos relatórios, Sr. Henriques!

Mas P não recuperou. Pelo menos, não no sentido em que a esposa esperava. Mas se ele pensava que este jogo não tinhas regras e que podia fazer o que muito bem entendesse, estava muito bem enganado. Essa era uma ideia perigosíssima. Que seria do mundo se todos se abandonassem a esta ideia. Seria perfeitamente ingovernável. As regras destinam-se a atribuir poder a determinados indivíduos. A estabelecer uma relação de forças. E sem a aceitação desta ordem das coisas, toda a vida se tornaria demasiado perigosa.

Eu próprio estou de acordo com estes princípios. Foi por isso que aprovei o seu internamento compulsivo. Não porque P estivesse doido – o que são afinal os doidos! –, mas porque é preciso conter estes fenómenos. Isolá-los e catalogá-los. As pessoas não podem simplesmente decidir comportar-se de forma imprevisível. Há regras a cumprir.

Foi detido num banco de jardim. Parecia não estar a fazer nada.

Mais tarde, falei com ele:

– O que pretende fazer da sua vida senhor P?
– Pelos vistos: nada.

– Mas senhor P, tente compreender, tudo isto é para seu bem. Não seria feliz e tornaria toda a gente à sua volta infeliz se prosseguisse nesse caminho.

– Mas talvez não queira sentir-me feliz e confortável. Talvez pretenda outra coisa.

– Sim, sim. Mas isso não pode acontecer senhor P. Compreende isso? Espera-se que as pessoas queiram ser felizes. É apenas natural. Enquanto não compreender isso não poderá sair daqui. Da mesma forma que deve compreender que não pode defraudar todas as espectativas que depositaram sobre si. Não nesta altura.

– É por isso que estou aqui fechado? Quero sair.

– Não é possível. O senhor está doente. Seria impensável admitir o contrário. Daqui por pouco tempo toda a gente o esquecerá. Tendo em conta que não se pretende curar, isso será o fundamental.

Comentários

  1. parabens pelos contos! aprecio deveras! Acabei de ler "o tio".
    aliás, ótimo trabalho.
    aqui é joao gomes . Moro no Brasil.
    sou um leitor e tambem escrevo um pouco. Abraco!

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