NUMA NESGA DE PASSEIO QUEBRADO
Uma flor nasce na cidade.
Numa nesga de passeio quebrado,
um caule finíssimo treme ao vento.
Na sua extremidade, como um beijo, abre-se a flor.
Sorri.
Não pode deixar de ser bela e delicada.
Uma frágil afronta à aridez da cidade.
Tão sozinha na sua multidão.
Não chove aqui. Alimenta-se, pois, de lágrimas.
Presta-se à cobiça dos amantes.
Dá-se, mas não é deste mundo.
Os seus ângulos não quadram.
Vê mais sem olhos, do que os olhos que a veem.
E tão exuberante chega a ser,
que creem alguns, que sem raízes possa viver.
Não pode fugir a um sapato descuidado.
E isso também é belo. Embora trágico.
A flor não tem o pragmatismo imobiliário
de um prédio, viaduto ou passeio.
Não tem infame ubiquidade do martelo,
a ductilidade do aço,
a mobilidade da roda,
o polimorfismo do dinheiro.
Mas a flor é tudo o que não pode deixar de ser;
independentemente do nosso crer.
E o acaso de numa nesga de passeio nascer
Não é triste fado
Mas divina graça.
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