MADRUGADA

 



Descobri que a melhor forma de combater as insónias é fingir que não existem. Levanto-me de madrugada e tomo um café. Vou até à janela e fumo um cigarro. Pego num livro: Gregor Samsa acorda de sonhos inquietos transformado num monstruoso inseto. Quantos de nós não se sentem monstruosos insetos? Por certo Kafka se sentiria um monstruoso inseto. Incomodado por ser um estorvo para a família; incapaz de trabalhar, incapaz de se levantar da cama, ainda pouco familiarizado com a sua nova morfologia. Ou um estrangeiro, como o protagonista do romance de Camus, que é incapaz de chorar no funeral da mãe e mata um árabe sobre a influência do ardente sol argelino – o mesmo sol que acompanhara o enterro da mãe. Um sol indiferente a tudo isto, tal como o protagonista, que se deixa guiar pela sua sensibilidade apenas – a terna e fraternal indiferença do mundo. Um mundo que o julga, mais por ser incapaz de chorar no funeral da mãe, do que por ter assassinado um árabe sem qualquer justificação. Amonto-o diversos livros em cima da mesa. Faço colagens ao estilo de Burroughs. Talvez por justaposição de pensamentos se alcance alguma coisa de novo. Ou apenas a ilusão disso – é o bastante. Já me acusaram de ser frio e insensível. Devo sê-lo. Pelo menos frio. O facto é que não consigo identificar a causa exata da minha insónia.

As nuvens abrem o suficiente para revelar a estrela de alva. No horizonte a claridade revela os seus contornos. O nascer do sol é sempre glorioso. Não há nada a fazer. Exceto fumar mais um cigarro. E esperar. Estou afinal em boa companhia. Não importa que seja madrugada. Não importa que sejam horas de dormir. O dia será por certo cansativo. Mas escrever ajuda. Alguma seriação do pensamento. Em vez do novelo circular tecido pelas voltas na cama. Terei de rever o que escrevi quando estiver um pouco mais lúcido. Concordâncias verbais e outros erros. Escrevo afinal porque não estou sozinho. Ninguém está, nunca. A madrugada também é fria. E hoje é minha companhia.

Sol quente, bem acima do horizonte. A luz invade todo o espaço. Parece agora incrível que tenha sequer existido noite ou madrugada. Que tudo estivesse escuro e quieto. Que Vénus fosse visível no céu noturno. Que a lua orbite a terra. E que alguns milhões de pessoas dormissem sincronamente, adestrados por um poder superior. O mesmo poder que agora os impele para fora da cama e para dentro dos seus automóveis. E os arruma num qualquer escritório ou linha de montagem – as coisas fazem muito pouco sentido – onde exercitam a sua especialidade – desmembramento apenas temporário. Quanto a mim, estou obviamente cansado, mas não a ponto de conseguir dormir. Será preciso muito mais para isso.

A única forma de combater a insónia é o cansaço extremo – para a qual concorre a negação da própria insónia. Todo o intelecto deve ser desmontado até que não reste nada. Compreendo que isto seja um contrassenso, mas não há outra forma de a vencer. 

O dia decorreu. Escurece e a lua levanta-se de novo no horizonte. Completa-se o ciclo e a insónia insinua-se novamente. Quanto cansaço devo ainda suportar até que, por fim, ceda? Inquieta-me a minha resistência.


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