O JANTAR
Não lhe apetecia voltar para casa. Nem um tostão no bolso – novamente. Era um incapaz; um sonhador inconveniente. A mulher viraria para ele o seu rosto magro e cansado, outrora jovem e vivaz, e não precisaria de lhe perguntar nada – nem ele de lhe responder. O seu olhar fugidio diria tudo: nem um tostão. Ela já não se queixava. Não abria a boca. Já os dois filhos não podiam suportar a fome em silêncio. Com cinco anos, o mais novo recusava-se a acreditar que a sua falta (era assim que designava a fome que o afligia) não pudesse ser aplacada. O mais velho, com oito anos, resignara-se à fome, mas odiava o pai. A fome é universal, pensava. O mundo não é cruel. Quem não é capaz de aquietar sua fome é, este sim, um fraco. O pai batera-lhe uma única vez, por ter roubado dois pães no mercado. Regatou-os das bocas salivantes do irmão e da mãe e foi devolvê-los. Odiava o pai, não por este lhe ter batido, mas pelos olhos desolados do irmão e da mãe. O pai era um fraco.
Assim que pressentiu o ranger da porta, o mais pequeno correu na sua direção:
– Pai!
Ainda por detrás da porta, o pai mordeu os lábios, interrompendo o seu movimento, e respirou fundo. Rodou o manípulo e entrou.
– Tenho falta! Tenho falta! – e agarrou-se às calças do pai.
– Deixa-me sentar – disse-lhe. E caminhou até um pequeno banco, por debaixo de uma janela baça e minúscula, arrastando-o junto à perna hirta. O contacto com o filho causou-lhe uma sensação desagradável. Como se fosse hipócrita dar-lhe carinho, quando não lhe podia dar um naco de pão. Apesar disso, sentou-o no colo e começou a habitual conversa:
– Meu pequenino, diz-me, o que gostavas de comer?
– Não sei, papá.
– Podes escolher à tua vontade. Tudo o que quiseres.
– Não sei, papá. O que poderia ser?
– Portaste-te bem hoje? Não arreliaste a mamã?
– Sim, papá.
– Podíamos começar com um pão quente, acabado de fazer, demolhado em azeite. Um pão fumegante, quase vivo, por entre as mãos ásperas. Acompanhávamo-lo com um bom chouriço, lambuzado de gordura bem temperada, e um queijo de cabra bem forte, que nos penetrasse profundamente nas narinas e se instalasse no nosso cérebro, que por um efeito mímico adquiriria a sua consistência suave e esburacada. Mas não ficávamos por aqui, não senhora. Eu beberia um copo de vinho e o meu estômago ficaria bem quente; toda a sua força revigorante se espalharia pelo meu corpo, os braços ficariam retesados e as pernas moles. E tu beberias um sumo de laranja. Feito com as mais doces laranjas de todo o pomar, capaz de iluminar as mentes mais soturnas. E depois, calmamente, chegaria o prato principal. O primeiro deles. Hoje poderíamos comer até rebentar, mas somos senhores de nós mesmos e vamos fazê-lo com toda a elegância e parcimónia. Primeiro, uma truta grelhada. Uma truta que como nunca ninguém vira antes, gorda e tostada, polvilhada com salsa e alho, acompanhada por pimentos vermelhos, batatas cozidas e feijão verde, tenros como perninhas de bebé. Alface, tomate e pepino, bem temperados com sal – cristais que se diluiriam ao primeiro toque da língua, como centelhas invisíveis. Escalpelaríamos meticulosamente a truta, saboreando cada pedaço de carne branca, até que ficasse apenas um exemplar esqueleto. Depois, faríamos uma pausa. Eu enrolava um cigarro com tabaco turco, que acenderia com toda a cerimónia, e saborearia a breve constrição capilar da sua dissipação, o seu cheiro adocicado. Meninos pequenos como tu não podem ainda fumar. Mas olharias com satisfação para a minha face já meio adormecida pela digestão. Estamos, contudo, apenas a meio da nossa refeição. Trazem-nos tâmaras, dulcíssimas, demolhadas em mel – um resgate do deserto. Mas prepara-se já a carne. Entrecosto no forno. É este o pitéu que nos aguarda. Uma carcaça arqueada do mais gordo dos porcos, assado no forno, com batatas, tomilho e alecrim. Assim que abrem o forno para retirar o tabuleiro crepitante, o cheiro a carne assada e ervas aromáticas invade toda a sala. Que bem que estamos. O tabuleiro é colocado no centro da mesa e, uma vez mais, servimo-nos de forma faustosa. Há comida para vários dias. Chupamos meticulosamente cada um dos ossos, descarnando a carne que se desprende facilmente, como acontece apenas à mesa entre os deuses. E eis-nos então, de ventre dilatado e mente turva, curvados por um crescente torpor, que se apodera de nós como uma maré. Mas ainda falta a sobremesa. Prepara-se uma sericaia com ameixas em calda de açúcar, ao mesmo tempo leve e doce. Estamos quase indispostos de tanto comer e refastelamo-nos num sofá, entrelaçados, até que finalmente a modorra se apodera de nós e adormecemos. Parece que vamos dormir mil anos…
Por essa altura o pequeno adormecera no colo do pai. Este fez um sinal à mãe que, como habitual, pegou no seu corpo magro e o deitou na cama que partilhava com irmão, separada da cama dos pais apenas por uma cortina.
O pai olhou para o mais velho, de lágrimas nos olhos, e perguntou-lhe:
– Também queres comer, meu filho?
– Não obrigado, pai. Não tenho fome – e retirou-se.
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