OS LOBOS TAMBÉM USAM COLEIRA



Oiço o seu uivo gélido na floresta. Correm mais rápido do que eu, mas preferem esperar que fique cansado. É mais seguro.

Um deles fincará os seus dentes nos meus tornozelos, interrompendo a minha marcha. E depois os outros segui-lo-ão, mordendo os braços e as costas, em simultâneo; se possível, um deles esmagará a minha traqueia, sufocando-me. Já os vi fazerem isto. São quase perfeitos. Tenho apenas uma hipótese. Uma bala na câmara. Se a enfiar no meio dos olhos do líder, estou salvo.

A minha altura já não os impressiona. Nem sequer os tiros. A sua fome é demasiado sórdida. Dá-lhes coragem.

Os meus pés enterram-se na neve. O peito inflamado ameaça rebentar. As pernas fraquejam, perdendo a força. O ataque final começa a qualquer momento. Sinto o seu arfar vaporoso.

Encosto-me a um pinheiro. Desfaço-me da luva e tiro a pistola do bolso do casaco. Uma hipótese apenas.

Gotas de gelo pendem das agulhas dos pinheiros. Um silêncio súbito invade toda a floresta. Desapareceram. 

O quadrado perfeito de uma janela iluminada desenha-se por entre as árvores. Dois segundos depois, desaparece. 

Desaperto a fivela do cinto e atiro-o com toda a força por entre as árvores, para atrair a sua atenção. Logo de seguida, levanto-me e corro na direção contrária, para a casa. Assustado, disparo o último tiro por entre os ramos dos pinheiros. E como num sonho, chego de um salto à porta da casa, a que bato furiosamente.

Não abrem. Não se ouve ninguém!

Olho assustado para trás. Os lobos não me seguem. 

Acende-se novamente uma luz. 

– Quem é? – pergunta uma voz de mulher. 

– Por favor, abra. Os lobos…

A mulher, uma velha, abre a porta e apontando-me uma caçadeira à testa.

– Que lobos!? Para o diabo com os lobos! Não vejo um lobo por estas bandas há mais de 10 anos. Entre, entre. Estava à sua espera – baixou a arma. – O meu marido preveniu-me acerca da sua chegada. Não faça essa cara de surpresa. O meu marido costuma pressentir a chegada de visitas com grande presciência. Parece bastante abalado. O que se passou lá fora? Sente-se, sente-se. Beba um chá quente. Estava a prepará-lo para mim – sim, a esta hora! Se não me engano o meu marido deve estar a chegar também. Ah, ah! Pois é que eu também pressinto estas coisas. Ah, pois é! O meu marido disse-me para não abrir a porta a ninguém. Mas não sou capaz de fazer isso. Não fui educada assim.

Nesse momento, sem qualquer aviso, entra um homem, que fica junto à porta, silenciosamente. É bastante corpulento e tem uma barba e sobrancelhas profusas. As suas roupas estão cobertas de neve.
Reparo que traz o meu cinto enrolado na mão.

– Ah, já aí estás! – disse a mulher. – Trouxeste comida? Temos um convidado.

O homem não respondeu. A mulher atarefava-se junto do fogão, dispersando algumas folhas sobre a água a ferver.

– Como é que vai ser meu caro senhor? – perguntou por fim o homem.

– Vou resistir, obviamente. Onde encontrou esse cinto? Estou em querer que é meu.

– Os lobos também usam coleira – disse a mulher.

Acordo com o despertador. Ofegando.

Levanto-me e vou até à cozinha, ainda com a roupa transpirada colada ao corpo.

O cão aproxima-se de mim. Enquanto bebo um copo de água, dou-lhe a mão a cheirar. Mas ele abocanha-ma com toda a força. Acordo novamente. Estou na minha cama. O meu coração bate a toda a velocidade. Doí-me a mão.

Olho para a cadeira, junto aos pés da cama. Procuro entre as minha roupas vislumbrar o cinto. Não o encontro.

Alguém toca à campainha da porta. Ainda abalado, visto o roupão e vou ver quem é.

A velha do meu sonho está à minha frente. Compreendo agora que se trata da minha vizinha. Nenhum de nós fala durante uns segundos.

– Parece que deixámos qualquer coisa por resolver ontem! – disse por fim a velha. 

Atrás de mim o cão rosnava. Enxotei-o para dentro de casa.

– Bom dia D. Ermelinda – disse ainda perturbado.

– Parece que o seu cão não gosta lá muito de mim. Meu Deus, quase nem parece um cão! É aliás sobre o seu cão que venho aqui falar consigo.

– Os lobos também usam coleira – repliquei de imediato, sem pensar.

– Oh, isso não é verdade. Onde ouviu isso? Não devia deixar o seu cão à solta durante a noite. Sabe que ontem mordeu o meu marido?

– Quem?

– Ora! O seu cão, claro está!

Fiquei em silêncio.

– Quem? – voltei a perguntar.

– O meu marido! Será surdo?

– Onde está o seu marido?

– Deve estar quase a chegar…

Ouvi novamente o cão a rosnar atrás de mim. Depois um ganido e os seus passos assustados. Virei-me. Um homem enorme estava dentro de minha casa. A velha empurrou-me pelas costas e o homem laçou o cinto (o meu cinto) em volta do pescoço e puxou-me violentamente arrastando-me pelo chão.

Sem ar, com a visão turva, ouvi o seu riso transmutar-se em uivos. Tomo consciência da desagradável força das minhas mandíbulas.  Acordo novamente na floresta, na alcateia. Os lobos também sonham. 

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