Caixa de lápis


Tenho uma falta. Sou incapaz. Não sei bem como vos explicar. Há um vazio. Uma incapacidade sem remédio. É como se fosse menos do que uma pessoa. Um trapo ou um cangalho. Menos do que isso – a eles nada lhes falta, são completos. Contudo, em mim, há uma falta. Sei-o por demonstração matemática, embora não vos possa explicar. Intuitivamente, sei-o. Da mesma forma que sei que deus não existe. É simplesmente uma ideia supérflua; e sei-o por fé. Sozinho, sei-o. 

O meu invólucro é como tantos outros, não me falta nenhum membro, não sou especialmente feio ou bonito. Por dentro, contudo, há uma falta. Batendo ao de leve, no sítio certo, é possível pressenti-lo. 

Mais grave, talvez seja a minha multiplicidade. Não sou, de fato, apenas uma pessoa, embora seja menos de que uma pessoa – álgebra curiosa. Talvez esta condição seja mais frequente do que penso. Talvez nem sequer seja um caso clínico. Mas sou, de fato, composto por múltiplos indivíduos. Como se me tivessem reunido à pressa, sem critério. Foi com certeza isso que aconteceu. Pois o critério, a determinação, são pouco frequentes num mundo sem deus. É tudo uma questão de sorte. Podemos ficar do lado certo ou do lado errado da evolução. Para mim, para ti, porém, tudo isso é indiferente. Não tenho, pois, qualquer simpatia pela evolução. Tenho apenas algumas dezenas de anos pela frente. Nada vai melhorar. É esta a triste realidade da idade adulta. Nada vai mudar e, ao mesmo tempo, tudo ficará decrepitamente pior. É tudo o que temos, mas é difícil de aceitar. O melhor será nem pensar nisso, mas como o evitar? Talvez haja um propósito em tudo isto. É difícil de acreditar. As coisas são como são e nada mais. Ponto final. E agora? Resta-nos o quê?

Uma caixa de lápis de cor. Arrumada à pressa. Falta pelo menos um. Tens dois vermelhos, mas nenhum verde. Que podes fazer? Acontece. As crianças arrumaram-na à pressa, enquanto a mãe, que voltava das compras, abria a porta da entrada. Nada mais. Acontece. Que fazer?

Podes levar uma vida sensata. Seguir o caminho já trilhado. Ou podes fazer o que te der na real gana. As consequências são de fato muito limitadas. Corres apenas o risco de te sentires feliz ou infeliz. E isso pode parecer uma grande coisa. É certamente uma grande coisa quando estamos infelizes, mas é apenas um estado transitório. Nada é definitivo e tudo é demasiado pequeno para que tenha importância. É claro que a vida é só uma, e que há certas coisas que não podem ser desfeitas. Mas também é certo que não podes desfazer o que não fizeste.

No amor as pessoas deviam falar menos. É impossível dizer sempre as palavras certas. Portanto é líquido que haveremos de dizer algo de errado. Talvez não adiante de nada. Tal contenção é um requintado processo de tortura; o amor é, por natureza, apenas transitório. 

A caixa de lápis. Podes ver, partilhar e usar. Mas no fim do dia, tudo o que tens, são os teus lápis. Infelizmente não haverá mais nenhuma confusão na altura de os arrumar. Os que tinhas, são os que tens. Cada vez mais curtos.

A polifonia é constante e garantida. Várias vozes se agitam, mas há uma que se cala. Essa é a minha voz. A única que guarda silêncio. Protege um tesouro. De nada serve, mas é um tesouro. É esse o tesouro que partilhamos, em silêncio, quando amamos. Não amar é tão difícil como guardar um segredo. Acabamos sempre por o revelar a alguém, pois é esse o seu propósito.

O lápis perdido sou eu. A voz que se cala sou eu. A falta que se destapa. O brando silêncio em que amo. 

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