O LENÇOL BRANCO

Começou a chover. Um lençol branco estava estendido no topo da falésia e o vento fazia-o estalar. 

A dona de casa, Emília, olhava calmamente pela janela da cozinha, fumando um cigarro. Em cima da bancada estava um pequeno cálice de xerez. Pensava: as pessoas não deveriam deixar a roupa à chuva; especialmente caso esteja seca. 

É preciso esclarecer a brancura deste lençol: era profundamente luminosa. Parecia impossível que um céu tão pardo pudesse produzir um efeito tão extraordinário. Emília olhava-o fascinada. Ao longe, uma aberta nas nuvens sobre o mar deixava penetrar o sol, refletindo-se no oceano, que por sua vez iluminava o lençol no cimo da falésia. Mas este jogo de espelhos passava-se longe dos olhos de Emília e produzia um efeito puramente mágico sobre o seu ponto de vista. Emília estava, em certo sentido, encantada.

Só para que tenham uma ideia, Emília tinha cabelo ruivo, encaracolado, chegando-lhe aos ombros, pele sardenta e olhos azuis. Era alta e robusta, embora não fosse gorda. Isto, contudo, é de reduzida importância para o caso. Mais importante é que, embora calma na aparência, Emília sentia-se agitada. Sentia-se consumida por ciúmes. Alguém lhe roubara o marido. Não conseguia pensar noutra coisa. Esse sentimento assediava de tal forma a sua mente, que conduzia a uma suspensão da atividade semelhante à calma. Pensava no que haveria de fazer. Adivinhava onde deveria estar o seu marido. O seu marido! Indignada, esmagou metade do cigarro contra o fundo do cinzeiro.

Continuava a chover. Aproximava-se uma tempestade. Apesar disso, decidiu sair. Iria ao motel da praia. Se fosse preciso bateria a todas as portas a até descobrir onde estava. 

Pegou na bebé, Sofia, que dormia tranquilamente, e embrulhou-a num cobertor. Incomodada, a bebé começou a chorar. Molharam-se bastante até chegarem ao carro, porque Emília se esqueceu da chave e teve que voltar a trás. Quando fechou finalmente a porta do carro, tinha o cabelo encharcado, colado à testa em fiapos. Sofia, depois de aconchegada na sua cadeira, com um cobertor sobre a pernas, sossegou. Emília olhou-a por um momento; depois ligou o carro e arrancou. 

Estava muito vento e chovia imenso. A estrada costeira era estreita e estava em mau estado. Mas Emília, alheia a tudo isto, conduzia a toda a velocidade. Sofia dormia agora tranquilamente.

Quase se despistou numa curva apertada, quando se cruzou com um camião de entregas, mas prosseguiu – aparentemente imperturbável. Acendeu apenas um cigarro, coisa que não fazia habitualmente perto de Sofia, mas não o pôde evitar.

Quando parou o carro em frente ao motel da praia não saberia dizer como ali chegara. Continuava a chover. Não se conseguia decidir se devia levar consigo a bebé ou deixá-la no carro. Nenhuma das hipóteses parecia boa. Veio-lhe à memória a imagem do lençol branco sacudido pelo vento; o seu estalar molhado; sentia-se inútil, fazia tudo errado. 

Carregou continuamente na buzina. A bebé começou novamente a chorar. Pegou nela e saiu do carro.
As portas dos quartos ficavam por debaixo de um pequeno alpendre, com acesso direto a partir da rua. Gritando o nome do marido, com a bebé ao colo, começou a bater a todas as portas, até que alguém abrisse. Tinha que estar ali. Tinha a certeza que estava ali. Esse cabrão, que não se preocupava com ela, nem com a filha. Queria apenas esfregar-se naquelas putas de merda! Que prazer justificaria a sua humilhação!?

Apenas dois dos quartos estavam ocupados. Mas em nenhum deles estava ao marido. Apenas turistas. Poderia ter ficado envergonhada, mas o seu estado de espírito estava para além da vergonha. Nada mais importava. Queria encontrar o seu marido. Queria o seu marido de volta.

Atravessou a rua a correr, com a criança nos braços, e seguiu até ao bar.

Quando entrou, todos pararam de conversar.

– Emília, está tudo bem? – perguntou José. – Que fazes aqui com este tempo? Ainda para mais com a pequenita.

– Onde está o Luís!? Onde está o Luís!? – gritou.

– Calma.

– Como posso ter calma! Como posso ter calma, quando me deixa sozinha em casa e se passeia por aí com essas desavergonhadas!

– De que estás a falar? Vem comigo, por favor. Vamos até minha casa, está lá a Joana. Podem falar um pouco – disse quase em segredo. 

– Onde está o Luís!? Onde está o Luís!? Tu sabes. De certeza que sabes. Não tentes encobri-lo. Vocês homens são muito bons nisso. Ah, pois são! – toda a gente a olhava agora. – Onde está o meu marido!?

José aproximou-se dela.

– Emília, ouve. Estás muito confusa. Vem comigo, por favor. Estás a envergonhar-te… e estás tremendamente confusa. Por favor…

– Já perdi toda a vergonha. Perdi tudo aliás…

Voltou à sua memória a imagem do lençol branco, chicoteado pelo vento. A sua brancura impoluta, o som impiedoso do vento sobre o pano molhado. Não deveríamos deixar a roupa à chuva. O que é que aquilo a fazia lembrar? Já vira aquele lençol branco – tão branco – antes. Ou talvez não o tivesse visto, mas antes imaginado. Aquele pano luminoso. Colocou a mão sobre a boca. Os olhos fitavam agora um ponto indeterminado. A morgue. Um lençol branco. Quieto. Não como o lençol agitado pelo vento. Quieto. E lá debaixo… o Luís. O Luís morrera. Como se pudera esquecer? Ou será que era mentira? Que era um engano! Poderia estar enganada. Olhou para a bebé, a filha de ambos. De alguma forma, viu nos seus olhos que era verdade e não o pôde suportar. Largou-a nos braços de José. Inclinou-se para a frente, baixando a cabeça. Os seus olhos fecharam-se. Quando finalmente se endireitou, a sua face estava deformada. Era impossível suportar o frenesim da imobilidade. O terror de um pano branco, quieto. A ausência. Quem lhe roubara o marido? Onde estava o seu marido? Começou a soluçar e a gritar, e atirou-se por fim ao chão, encolhendo-se num canto, por baixo de uma mesa, esperneando e tapando os olhos com as mãos.

Emília enlouquecera. Por vezes, as pessoas enlouquecem. É simplesmente demais o que nos fazem. 

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