O COVEIRO
As viúvas lavam as campas de mármore com um trapo molhado. O cheiro água estagnada e flores podres invade o ar.
Que trabalho de merda. É impossível manter uma cara séria na companhia de tantos mortos.
O mais difícil é esperarem de mim alguma empatia. Claro que sou um profissional. Os senhores também o são, com toda a certeza. Fazem o vosso trabalho com brio e eu também. Mas deviam tentar enterrar alguém sem lançar uma graçola. Já repeti estes gestos centenas de vezes. Perante um ofício tão literalmente fúnebre, que outra forma haverá que aligeirar o espírito. Contudo, ninguém o entende. Para eles é um momento solene, cénico até. Mesmo a minha arrelia com a enxada que não presta, é mal recebida.
Apesar de tudo, é com satisfação que abro um novo retângulo no chão. Procuro a perfeição das arestas. Há uma profundidade ideal. O sol do meio-dia não lhe toca o fundo. A escuridão, não sendo completa, é irreparável.
Por vezes, acho que sou apenas um guarda. Sinto que é essa a responsabilidade que me atribuem. Todo o cemitério é, aliás, murado. Não sei se para impedir que os vivos entrem ou que os mortos saiam. Não é claro para mim. Mas é certo que muita riqueza se acumula em torno dos mortos; o investimento no seu descanso é notável e deve ser protegido.
Quase todos os dias morre gente. Não posso, pois, descurar a organização do espaço. Sem algum planeamento seria uma tarefa impossível. Haverá, porém, outros métodos.
Nada me compraz mais do que passear entre os mortos. Nos dias em que não há nada para fazer, calcorreio os novos lotes, ainda floridos, sem mármores e cimento. Acho que devem ser felizes aqui – os mortos. Mais do que quando estão entaipados em mármore e pedra. A morte range de encontro às pedras, a sua vibração é insuportável.
Detesto os agentes funerários e ainda mais os padres. Negócios maravilhosos, ambos.
Os cemitérios católicos são insuportáveis. São a continuação da vida depois da morte. E é nisso que são reprováveis. A edificação, a acumulação, sem descanso.
Não quero ser enterrado aqui,
entre muros. Enterrem-me no topo de um outeiro, salpicado com estevas e
papoilas, à beira de uma seara. Quero ouvir o seu roçagar e o canto do melro pela
manhã. Não quero um padre. Tragam-me um índio e peçam-lhe para cantar; cantem
como as cotovias, riam como as cigarras – faço questão. Nada mais apropriado. O
caixão tenho-o feito. É de pinho e cheira bem.
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