A memória da água


Os meus melhores amigos? Não falo com eles há anos.

Só de forma dramática se pode alterar a configuração de um vaso. Mesmo no deserto, guarda a memória da água.

A minha terra? Aquela onde quero ser enterrado? É a mesma que se entranhou nas minhas unhas em criança. Aquela onde cuspi e mijei. É essa a minha terra. E é lá que gostava de descansar.

Não falo com meus melhores amigos? Claro que não. De que outra forma os poderia conservar intactos na minha memória. Também eles são produto da minha infância. Qualquer convivência seria destrutiva – é que agora somos adultos. Só os quero ver no dia do meu funeral.

O problema do homem – o problema geral – é a ausência do criador. Como raio é que havemos de dar sentido a isto? Para que servimos? O vaso não tem esse problema. Tem-nos a nós para o pensar. Somos nós que lhe damos sentido. Mesmo em cacos, faz-nos lembrar a água que haveria de transportar.

Não haverá outra terra como aquela que calcaste em criança. A leveza com que o fizeste não pode ser repetida.
O primeiro beijo, já esquecido, pesa-nos no bolso como um tijolo.
Só há cardos e baloiços como os primeiros.

Cozinham-nos em lume brando. Cada dia uma cópia. Até à completa insensibilização.

A água está a ferver! A água está a ferver!

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