O rei
Serpente Ouroboros - símbolo da eternidade, do eterno retorno: "aquele que devora a sua própria cauda" |
A batalha estava perdida. Já de noite, o rei despojou-se da armadura e de todas as suas insígnias, puxou para cima de si o corpo exangue dos seus súbditos, e deixou-se estar quieto, como morto, no meio da lama.
Os seus irmãos estavam mortos; vira-os morrer a seu lado. Os seus melhores guerreiros tinham sido chacinados, para que ele próprio pudesse retirar; mas o inimigo fora mais rápido, conhecia melhor o terreno, e foram novamente cercados.
Animado pela vitória, o inimigo não se demoraria em festejos. Marchava agora para a capital, que estava longe, mas à sua mercê, pois a ambição desmedida de seu rei a todos perdera.
Quando dois aldeões lhe vieram roubar os sapatos, o rei matou-os com um punhal e fugiu por entre a floresta. Correu durante dias, embrenhando-se no seu interior, até que se perdeu completamente. Seguindo sempre para norte, atravessou uma zona completamente selvagem. Caminhou durante semanas, até que a floresta finalmente cessou, dando lugar a um deserto. Depois de caminhar durante vários dias na sua orla, decidiu-se a atravessá-lo. Não queria mais ser rei. Talvez deseja-se morrer. Contudo, ao fim de duas noites avistou uma fogueira. À sua volta estava um grupo de homens que o receberam com confiante passividade. Eram guerreiros, tal como ele. Nenhum deles o reconheceu. Estava agora muito longe de casa. Estes homens eram muito diferentes dele. A sua pele era mais escura, quase acobreada, e os seus olhos eram pequenas fendas por detrás das pálpebras semicerradas, quase sem pestanas.
Deram-lhe de beber e comer.
Viveu entre eles como um homem simples, esquecendo que fora um rei e assim sepultando a vergonha da sua derrota. Tomava prazer na vida dura do deserto. Cedo as suas habilidades marciais foram notadas e apreciadas. O líder da tribo simpatizou com ele, tornando-se companhia frequente do seu bivaque. E foi com renovado prazer que combateu a seu lado, retribuindo a hospitalidade; pois, mais do que qualquer outra coisa, era um guerreiro.
Durante muitos anos viveram ali, entre a estepe e o deserto, tomando imposto sobre as caravanas que passavam; roubando e assassinando. Depois as caravanas deixaram de passar e instalou-se a guerra. As tribos nómadas fugiram para oeste, procurando territórios férteis. E a seu lado reuniram-se muitas outras tribos acossadas por um inimigo comum.
Tomavam agora, a seu belo prazer, estes novos domínios, surpreendendo todos pela sua feroz barbárie. Estes homens duros do deserto, regalavam-se agora em ricos palácios, bebendo o leite e comendo o mel.
Lentamente, foram-se aproximando da pátria do antigo rei. As moedas que agora roubavam, tinham já sua efígie.
Inevitavelmente, coube-lhe a tarefa de assaltar a sua cidade natal. Descobriu que afinal resistira e não fora tomada pelo inimigo aquando da sua clamorosa derrota. Mas não resistiria desta vez. E ele foi um dos mais valentes combatentes, matando com a suas mãos, sem piedade, centenas dos seus antigos súbditos – pois acima de tudo, era um guerreiro. A tangibilidade da batalha era inebriante.
Generoso, o seu novo imperador deu-lhe aquela cidade para seu governo. Despedindo-se, este anunciou-lhe apenas com um sorriso:
– Agora, vai falar ao teu povo.
* * *
"E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasses assim?"
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