A fuga
Entrei em casa e a cozinha estava a fumegar. Era setembro, mas estava um calor horrível. As crianças corriam por todo o lado. Gritavam e choravam. Pousei os sacos das compras no chão – por vezes pensava que aquela casa era um monstruoso organismo vivo, insaciável no seu apetite e pródigo das suas dejeções. Tentei pousar a carteira e as chaves no sítio do costume, mas era impossível. Todo o móvel da entrada estava coberto com cartas e papéis e faturas e também brinquedos e também creme para as mãos e protetor solar. Engoli em seco. Cocei a cabeça, olhando em volta. Não disse nada. Mantive a carteira e as chaves no bolso.
Era preciso preparar o banho. As crianças continuavam a gritar e a correr pela casa. E a minha mulher, afogueando-se de volta do fogão, gritava também com elas, instando-as a parar. Coloquei a água a correr e enchi a banheira. Não me sentia capaz de dizer uma única palavra. Ao entrar na cozinha murmurei algo que se pudesse parecer com uma saudação; o exaustor trabalhava a toda a velocidade, mas o ar era quente e espesso e era impossível falar. Arrumei a loiça da máquina. Apanhei a roupa do estendal. Um novo alguidar de roupa lavada aguardava já. Milhentas peças de tamanho minúsculo tinham que ser penduradas. Lembrei-me da água da banheira. Fui desligá-la. Ao mesmo tempo comecei a pensar no que tinha para fazer no trabalho. E depois naquilo que eu gostaria realmente de fazer; nos meus planos; senti-me angustiado, nunca faria nada de relevante na vida. Tudo me parecia uma luta perdida. Entretanto, a casa tornou-se um pouco mais silenciosa. Apenas o ruído da televisão. Estavam todas sentadas no sofá, em hipnose. Pedi-lhes para irem para a banheira. Não me ouviram. Fui estender a roupa. Na varanda estava mais fresco. E isso deu-me a ideia de que talvez devesse ir lá fora, à rua. Talvez me fizesse sentir melhor. Só por um pouco. Sair dali e poder pensar em silêncio por um momento. O banho já estava atrasado e o jantar que se lhe seguia também. Iam-se deitar tarde e eu precisava de um momento de silêncio, precisava de estar sozinho.
Gritavam novamente. A minha mulher desligou a televisão e mandou-as tomar banho. Continuaram a falar interminavelmente. Raios.
– Vou pôr o lixo lá fora.
– Agora?
– Sim, agora.
E saí. De certa forma, fiquei espantado com a facilidade com que o fiz.
Desci no elevador com o saco do lixo na mão. Tinha vontade de fumar um cigarro. Infelizmente deixara de fumar. Talvez encontrasse alguém a quem pudesse cravar um cigarro lá em baixo.
Só conseguia pensar num cigarro. Ao ponto do seu cheiro (ainda que apenas imaginado) me começar a enjoar. Estava mais fresco na rua; corria uma brisa. Fui até aos contentores do lixo. Estavam a abarrotar. Empilhei o meu saco sobre os outros.
O silêncio espreitava por todo o lado. Não um silêncio profundo. Os carros ainda zumbiam na avenida e os autocarros chocalhavam, lançando suspiros; ao longe o cão ladrava; ouvia-se por vezes alguém a gritar, chamando. Mas havia por momentos silêncio. E esse silêncio parecia-me uma terra estrangeira, misteriosa e exótica. A noite caía a toda a velocidade. Decidi que não ia voltar para casa.
Hesitei por momentos. Para onde ia? Primeiro tinha que comprar tabaco. E talvez depois tomasse um café. Precisa de me manter acordado. Tinha muito que fazer. Queria aproveitar e fazer tudo. (Talvez pudesse sentar-me a escrever durante toda a noite, hipnoticamente.) Viver tudo num dia e depois descansar.
Passei por debaixo das árvores frondosas que forravam o jardim à beira de casa. Lá de cima, da varanda, podia ver as suas copas. Mas, agora e aqui, o seu verde misturado com a noite, pois os candeeiros da rua tardavam a acender, tinha algo de terno, suave e aconchegante. Sentia-me protegido. Caminhei ainda mais, acelerando o passo.
Não queria ir aos cafés aqui da zona. Conheciam-me e não era habitual frequentá-los a esta hora. Passei por eles sem olhar. Não que houvesse em algum mal em ser visto. Acho que tinha receio de parar e conversar – talvez isso fosse o suficiente para me demover do meu plano: não iria regressar a casa – nunca mais.
Caminhei em direção a sul, sempre a descer, até ao rio. Precisava de andar. Andar e pensar. Devia ir para o deserto. Imaginava-me a caminhar durante horas sobre o sol escaldante. Ou talvez caminhasse à noite, estaria mais fresco. O céu seria imenso. Beberia chá. Chá no deserto. Deve ser maravilhoso beber chá no deserto. E comeria tâmaras, doces como mel. E água saberia tão bem. O deserto é o melhor sítio para beber água. Ou para tomar um banho. Como deve ser fresca a água nos oásis. E poderia ler. Tenho tanta coisa para ler. Talvez conhecesse beduínos e atravessasse o deserto numa das suas caravanas, sobre o lânguido balançar dos camelos. Subiria às montanhas, visitaria as pequenas aldeias, com as suas casas cor de terra, e falaria com os berberes. Aprenderia a sua língua. Ou falaria francês. Logo se via.
Quanto dinheiro tinha comigo? Pouca coisa. Talvez o suficiente para entrar no primeiro autocarro que visse. Ou então num comboio. Imaginava já o seu matraquear compassado; as catenárias fugazes, manchando de negro os prados verdes; e lá fora a vida, pessoas que faziam coisas, pessoas que viviam; mas não eu, eu estaria sentado no banco de couro, acariciando as suas costuras (como cicatrizes), e não viveria; estaria protegido pela janela e mesmo que houvesse outros passageiros, teria a desculpa perfeita para me limitar a ouvir as suas conversas, a imaginar os seus pensamentos, não me atrevendo sequer a olhá-las diretamente, com medo de que se tornassem reais. Seria um passageiro; apenas um passageiro. Quero ser um passageiro.
Ou talvez me tornasse mendigo. Mais apropriadamente um vagabundo. É uma palavra melhor. Mas está tanto calor, ainda tanto calor. Quero ver neve a cair. Acariciar os seus farrapos sem peso. Ou ficar do lado de dentro de uma janela, talvez num café, bebendo uma bebida quente, quase a escaldar, enquanto lá fora o vento varre a neve. E toda a gente teria camisolas de lã e as faces coradas pelo aquecimento.
Parecia-me que tinha passado muito tempo desde que começara a andar. Parecia-me que tinha já me afastado muito. Mas na realidade não tinha sequer saído do bairro. Chegava agora à sua periferia. Os prédios terminavam ali.
Um vizinho, o Sr. Alberto, apareceu à esquina, puxando seu cão pela trela. Cumprimentou-me. Era exatamente aquilo que eu queria evitar. Como poderia eu continuar depois de ver alguém conhecido. Agora, tudo me parecia ridículo!
Devo voltar para casa?
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