O julgamento
"Os Bêbados", José Malhoa |
O caso não era grave. Um pequeno delito. Porém, as provas eram irrefutáveis, o réu reincidente e talvez houvesse algumas agravantes.
A sala de audiências estava cheia. Talvez por isso, o juiz estava irritado. Olhava severamente ambas as partes. A sua toga negra, de um negro profundo, sem vestígios de contaminação ou desgaste, governava toda a sala.
A audiência prosseguiu com celeridade. O réu não tinha sido apanhado em flagrante delito, mas indubitavelmente roubara. Levara apenas uma galinha, mas matara o cão, para que não o denunciasse, e era sobretudo este ato de crueldade que a todos afligia. Se desta vez, por uma galinha, não se coibira de matar um velho cão, o que aconteceria da próxima vez? E tudo por uma garrafa de vinho.
O ofendido, um farto proprietário, de faces rubicundas e fartas patilhas, ajeitava-se na sua cadeira como um balão; era muito gordo, mas inspirava uma sensação de leveza, e parecia prestes a ressaltar e voar pelo ar ao mínimo toque. Embora a sua face redonda, de pele esticada até ao ponto de rotura, fosse pouco expressiva, um bom observador poderia notar que o seu carnudo lábio inferior se agitava. Era incapaz de o mostrar, mas estava inconsolável. O cão era o seu companheiro. Não que o tratasse muito bem. Batia-lhe até com frequência. Mas estava lá todos os dias, à porta de casa, depois do café da manhã, olhando-o com impassível fidelidade – e isso valia muito para um homem como ele. Ás vezes dava-lhe até um resto de pão com geleia.
O réu nem sequer roubara com intuito de alimentar sua miserável família, reforçava a acusação. Matara várias galinhas, mas levara apenas uma, que vendera na aldeia vizinha a troco de meia dúzia de tostões. O suficiente para mais uma garrafa de vinho. E o pobre cão – reforçava a acusação – o velho cão, fidelíssimo companheiro, que mais não queria do que proteger o que era de seu dono, fora morto sem piedade. Um suspiro percorreu toda a audiência, que não tardou a se insurgir, insultando o réu. Tomado pela emoção, o queixoso soluçou. A sua enorme barriga balançou, tomada por um espasmo involuntário, e várias cadeiras rangeram em seu redor, quando ele se levantou. De voz embargada, ridícula para um homem do seu tamanho, insultou também o criminoso, sendo secundado por todos os espetadores. O juiz teve que intervir, exigindo ordem na sala.
E isto – continuou a acusação –, enquanto a mulher, magra e suja, de trato ordinário, esperava em casa (falava como se esta não estivesse na sala), batendo nos filhos, pois não podia suportar que lhe pedissem mais comida. Esperava o marido, que saíra ao fim da tarde para comprar mercearias e que só retornaria de madrugada, depois de ter adormecido, bêbado, na beira do caminho. E de cada vez que, que os filhos diziam à mãe que tinham fome, era como se lhe espetassem uma faca no coração; e não havendo nem mais uma fatia de pão para distribuir, mordia as mãos e batia-lhes, angustiada, indignada com incessante fome, que parecia não ter fim. Para que precisam de comer tanto? Desapareçam! Não me aflijam! O marido, esse bêbado miserável, subtraíra-lhe à força, o pouco dinheiro que conseguira naquela manhã, fosse como fosse, pois, a poucas coisas se coibia para apaziguar a incessante fome. Batera-lhe, mas afiançou-lhe que traria comida para todos, jurou mesmo, mas imediato o gastou em vinho, bajulando as putas no jardim da vila.
Pobre diabo. Maltrapilho. Fora para colmatar essa falta que tivera a ideia de roubar as galinhas. Fora com a boa intenção de se redimir e alimentar os filhos, que a roubara. Mas, talvez excitado pelo cacarejar aflito das galinhas, ou pelo ganido do cão, tão definitivo, tudo esqueceu. O sangue morno sobre as mãos excita os homens e ainda o seu calor não se tinha dissipado completamente, e já este pensava, apenas e só, no vinho. Precisava de mais vinho. E, nem por um momento, se lembrou mais dos filhos ou da mulher. Mesmo que quisesse, não poderia recordar-se dos seus rostos.
Não havia provas definitivas de que o réu tivesse roubado a galinha ou morto o cão, argumentou a defesa. Era tudo circunstancial. A galinha, encontrara-a ele morta na beira do caminho – fora essa a história que o seu constituinte lhe contara. Talvez tivesse sido alguma raposa que a ali tivesse abandonado, enfastiada. O cão, velho e sovado, tivera com certeza a mesma sorte, tentando rechaçar este animal selvagem. Animais que se aproximam cada vez mais de nossas casas, sem nenhum medo. É a fome que a todos aflige. Para além disso, o réu tinha mulher e filhos, que precisavam dele. Eram o seu único sustento, pois a mulher não passava de uma débil mental, que oferecia o corpo a troco de nada, e deixava os filhos ao abandono. Filhos, que, aliás, ninguém poderia afiançar quem fossem dele. O pobre marido, refugia-se na bebida. É bem verdade que o faz. Trata-se afinal de uma doença a que é preciso acudir. Não será pelo castigo, pelo opróbrio, que resgatareis este homem da perdição. Valha-nos um pouco de piedade, pois fazemos todos parte de uma mesma família. Não seriam capazes de negar ajuda a um irmão. Não deixariam de perdoar a um filho, nem a mais grave das faltas. Então porque haveriam de maltratar este homem. Um cão e uma galinha. O que vale isso, meus senhores? E assim prosseguiu a defesa, ora negando o crime, ora invocando diversas atenuantes, e invocando finalmente a caridade de todos os presentes.
O juiz – não o dissemos ainda – era um homem magro, de tez morena, barba meticulosamente aparada; a cabeleira branca, costume da época, contrastava com a sua pele. E, como já dissemos, estava irritado. Não podemos mais do que especular acerca da origem dessa irritação. Talvez o almoço lhe tivesse perturbado os humores do fígado. Talvez o tivessem acordado a hora imprópria, a meio da sesta, com a penosa obrigação de ali comparecer e julgar. Não é tarefa fácil julgar os outros. Não sabia sequer se seria uma tarefa legítima. Quem era ele, para se arrogar de tudo saber, de tudo conhecer, administrando o bem e o mal, discernindo entre culpado e inocente? Ou talvez estivesse irritado, como já dissemos, apenas porque a sala estava cheia; cheia também de antecipação; todos esperavam sangue. Sangue. E o juiz sabia isso. Queriam o pobre diabo amarrado ao pelourinho e chicoteado. E ali ficaria por vários dias, amarrado, enquanto os miúdos lhe escarravam nas feridas e os bêbados lhe mijavam para cima dos pés. Como se todos pudessem comungar daquela expiação da culpa. Como se o seu castigo a todos pudesse absolver. Pois todos eram afinal culpados; todos haviam pecado, sem exceção.
A face do juiz crispou-se. As alegações da defesa eram factualmente ridículas. Tinha agora que tomar uma decisão. Se pudesse, não o faria. Mas isso significaria um linchamento público. O réu esfregava as mãos aflito, antecipando o castigo, que já antes provara. Olhava pela janela, de onde se podia ver o pelourinho no centro da praça, por entre as árvores verdejantes.
Todos aguardavam com expectativa. 10 chicotadas, 50 chicotadas, 100 se fosse severo. Como poderia fazê-lo? Como poderia ir para casa, a seguir a isso, e beijar a mulher? Como poderia, depois disso, brincar alegremente com os filhos, como se nada fosse? Apertar a mão a pessoas de bem, sem uma sombra nos olhos. E o pior é que não seria ele a aplicar o castigo. Cabia-lhe apenas ordená-lo, o que o fazia sentir-se ainda mais sujo; um cobarde. E ele era um homem bom. Escolhido pelos seus pares por ser um homem justo e ponderado. Como poderia condenar um pobre coitado ao opróbrio. Ainda que esse pobre coitado fosse um vil sacana, que nada respeitasse, nada honrasse e tudo ofendesse. Era um homem. Merecia perdão, não castigo. Toldado pelo vinho, nada mais via. Sabia que, ainda agora, não pensava noutra coisa. Queria apenas escapar-se dali e beber. Não lhe importava que fosse chicoteado e humilhado. Isso seria apenas mais uma razão para continuar a proceder como até aqui, ou pior. Pois todos seriam seus inimigos e nenhum respeito se lhe poderia exigir.
Então, o juiz levantou-se e disse:
– Meus senhores, acompanhem-me até à praça. A sentença será aí proferida.
– Meritíssimo juiz, isto parece-me altamente irregular – objetou o advogado defesa (um bêbado também), mas todos o ignoraram, saindo porta fora atrás do juiz. O réu seguia acorrentado, acompanhado pelo oficial de justiça.
Quando chegaram à praça, o juiz pediu o chicote e ordenou que retirassem as grilhetas ao réu.
– Peço vos que façam tal como eu ordenar. Nenhum de vós deverá interferir. Sois todos cristãos, todos irmãos, todos vocês saídos do ventre de uma mulher. Pobre e ricos. Idiotas e inteligentes. Santos ou depravados. Quem de vós não foi já culpado de algum crime para com os seus semelhantes? A inveja, a gula. A luxúria. A preguiça, a vaidade. Qual de vós não desejou já o que não podia ter… A concupiscência deste pobre coitado merece perdão.
Todos fizeram silêncio. Por momentos, ouviu-se o rumorejar do vento nas folhas das árvores.
– A sentença são 100 chicotadas! – continuou o juiz. A multidão aprovou, o juiz seria afinal severo.
O juiz despiu então a toga e a camisa de linho delicado, ficando em tronco nu. Tirou também a cabeleira branca, deixando a cabeça a descoberto. Ia pousar os seus pertences em cima de um arbusto, mas viu a esposa e entregou-os com toda solenidade. Seria ele a aplicar o castigo? O gordo proprietário franzia a custo a testa, intrigado por todo aquele procedimento.
O juiz pegou novamente no chicote e dirigiu-se sem hesitação ao condenado que tremia incontrolavelmente. Empurrou-o até ao pelourinho.
– O castigo deste homem será o do chicotear um outro homem! As 100 chicotadas deverão ser aplicadas por ele próprio. E eu ofereço-me para as tomar sobre as minhas costas!
O povo agitou-se e muitos objetaram. Mas algo de extraordinário aconteceu, pois, o juiz, assegurando que se encontrava no seu perfeito juízo, a todos convenceu a não interferir. O castigo era sempre um momento de unidade. E, nem que fosse por curiosidade, todos permitiram que aquilo acontecesse.
O juiz ajoelhou-se nas escadas do pelourinho, expondo as costas ao castigo, e agarrou-se umas das argolas. A sua mulher gritava, histérica.
O bêbado nem queria acreditar. Aquele cabrão estava agora à sua mercê. Naquele momento, chicotearia cada um dos presentes até à morte, se assim o deixassem. Odiava-os a todos.
Lambeu os lábios secos e vergastou o juiz com toda a força. Uma, duas, três vezes. Ninguém o impediu.
Continuou até verter sangue.
Queriam envergonhá-lo ainda mais? Era isso?
– Porque não acreditam na minha palavra! Foi como vos disse o advogado. Eu não roubei nada… a galinha estava abandonada na beira do caminho. Nada sei sobre o pobre cão! Sou um bêbado e por isso todos tomam proveito de mim.
– Então porque aceitaste o teu castigo? – disse o juiz sem levantar a cabeça. – Poderias tê-lo recusado.
– Não sabia que me era dada essa possibilidade.
– Pode um homem impor algo a outro sem que este o aceite?
– De alguma coisa serei culpado. Mas vós também. Talvez até mais do que eu.
O juiz instou-o a continuar: – Continua, seu cão dos diabos!
– Mas eu juro que vi uma raposa na outra madrugada; um dia antes. Os seus olhos cintilaram no escuro… e depois fugiu.
Algumas nas pessoas na assistência, que até aí parecia estar num estado de transe boquiaberto, começaram a sorrir. Depois ouviram-se risos, que gradualmente sem transformaram em despregadas gargalhadas.
Olhou para todos e sentiu uma profunda vergonha. Parecia-lhe estar num sonho. Como se não tivesse, até aí, controlo sobre o que estava a fazer. Todos troçavam de si. Do bêbado. Largou o chicote e correu por entre a multidão. Todos abriram caminho para que passasse livremente.
Ninguém mais o viu até à madrugada do dia seguinte, quando as mulheres, dirigindo-se para a lavoura, o descobriram-no enforcado na figueira, à entrada da vila. Os seus pés estava a pouco mais de um palmo do chão e uma raposa roía-lhe os tornozelos.
Comentários
Enviar um comentário