A sangue frio

Sempre soube que havia algo de errado comigo. Talvez tenha nascido assim. No essencial era isso. Mas quando era criança, muito novo ainda, caí de um muro alto e isso não ajudou nada. Cortei as gengivas e sabe-se lá mais o quê. Levantei-me sozinho (a chorar) e fiquei à espera que alguém me abrisse a porra do portão de casa. Desde essa altura, comecei a babar-me constantemente. Andava sempre com um lenço na mão, para limpar a boca; não o conseguia controlar. Não que fosse um completo anormal. Era apenas isto. Mas no fundo era mais do que isto. Por exemplo: sempre preferi brincar com meninas, mesmo na idade em que todos os meninos as detestam – elas pareciam-me muito menos idiotas do que os rapazes e as suas brincadeiras mais interessantes. (Podem pensar que este comportamento é insignificante; mas trata-se de facto que uma perversão altamente desviante). Nunca voltei a ter tanto sucesso com as mulheres como nessa idade – acho que também lhes parecia menos estúpido do que a generalidade dos rapazes. Depois delas, preferia a companhia dos adultos. Muitas vezes limitava-me a escutar as suas conversas. Ali ficava, com as mãos dentro dos calções, acariciando os tomates (outra mania), enquanto os ouvia. Apenas porque maior parte dos rapazes era bastante estúpida. Mas de quem eu gostava mesmo, era da minha própria companhia. Só me sentia verdadeiramente bem, sozinho. Só assim podia estar completamente relaxado e ser eu mesmo. (Quando estava junto da minha mãe era muito parecido; era como se estivesse comigo mesmo.) Sempre que estava junto de outras pessoas tinha tendência para reparar em todos os pormenores do que diziam e como o diziam (fixava tudo), mas isso acabava por exigir muito de mim e ficava esgotado. E fazia também com que eu nunca soubesse o que dizer. Por isso, ficava a maior parte das vezes calado – porque estava a ouvir o que diziam. Por isso e porque sempre achei que o meu ponto de vista era só meu e que havia pouco interesse em partilhá-lo (o que não era totalmente errado ou despropositado); ou que dizer algo de óbvio não era justificável. Mas enfim, preferia estar sozinho. Quando alguma tia nos visitava, às vezes escondia-me debaixo da mesa da sala ou entre os sofás, para que não tivesse que lhes ir falar. Ouvia-as na cozinha. Sabia que me viam. A minha mãe ou a minha avó iam lá chamar-me. Pediam-me que fosse falar à tia ou à prima ou a quem quer que fosse. Às vezes ia. Mas tornava visível o meu desconforto; elas percebiam-no e lentamente passaram a contemporizar com ele.

Brincava tanto sozinho. Inventava histórias sem fim. Sonhava de olhos abertos. Deixava de ouvir o mundo, tudo se passava na minha cabeça e ouvia apenas a minha voz lá dentro.

Embarcava em projetos monomaníacos, como escrever uma enciclopédia, ou enchendo cadernos sem fim com numeração romana (que feliz fiquei quando a descobri) para mostrar à minha mãe. Ou então, ainda pior, apontando as matrículas dos carros que passavam na estrada. Era bastante estúpido (uma necessidade imperiosa de catalogar), mas cheguei a convencer outros a ajudarem-me nesta tarefa. Quer dizer, não foi bem convencer – nunca fui muito bom a convencer ninguém. Eles também não tinham mais ninguém com quem brincar e achavam que se eu me despachasse daquilo, talvez pudéssemos brincar a qualquer coisa de jeito. Enfim.

Nunca de gostei que me ensinassem. Preferia apreender as coisas sozinho, lentamente, ao meu ritmo inexorável. Foi assim que comecei a atar os sapatos de forma diferente – e ainda hoje não o consigo fazer de outra maneira. Não que fosse melhor que os outros; era apenas diferente e talvez até pior (essa forma de atar os sapatos), mas funcionava e conseguira fazê-lo sozinho e eu gostava de fazer as coisas sozinho, gostava de aprender por mim mesmo, experimentando.

E depois havia as botas ortopédicas. Todos os anos tinha que ir a Lisboa, comprar um novo par. Tinha o pé chato, os joelhos tortos, ou qualquer outra deficiência que algum cabrão de um médico encartado inventou. Sempre que ia a Lisboa vomitava no autocarro. Ficava profundamente doente com todo aquele fumo e ruído e o cheiro a gasóleo. A merda é que durante muito tempo não podia fazer muitas das atividades que os outros miúdos faziam e era exatamente isso que eu precisava de fazer para ficar forte e endireitar a merda das pernas.

Ainda bem que a minha mãe era suficientemente pobre para nunca me se ter lembrado de me levar o um psicólogo – aí seria ao fim da picada, já me bastavam as botas ortopédicas; se alguém metesse na cabeça que havia algo de errado com o meu comportamento, seria o meu fim. Ainda hoje acho que o melhor que os pais têm a fazer pelos filhos é ignorá-los. Deixá-los crescer sem entraves, deixá-los experimentar e decidir o que é melhor para eles, e não os sufocar.

A adolescência foi difícil. Já não me babava, nem coçava os tomates em público, mas como podia arranjar uma namorada se não abria a boca. Podia ficar dias inteiros sem falar. Sentia-me perfeitamente confortável. Aliás, só assim me sentia confortável. Era sempre embaraçoso quando alguém me incitava a participar na conversa. É que não tinha realmente nada de jeito para dizer. Não conseguia fazer duas coisas ao mesmo tempo: ouvir a conversa e pensar no que dizer. Em contrapartida tinha uma memória excelente e a escola era fácil. Às vezes até tinha vergonha de ter uma memória tão boa e fingia que tinha dificuldade em recordar-me de qualquer coisa, quando de fato, estava mesmo ali na ponta da minha língua.

Mas a verdade é que sempre fui um cabrão marado da cabeça, mesmo que aparentasse ser sempre o mais certinho e confiável de toda a turma. Lá no fundo estava uma profunda incapacidade de lidar com o mundo e com a maior parte das pessoas.

Às vezes conhecia uma pessoa de quem imediatamente não gostava. E pensava que talvez fosse embirração minha. Mas ao longo do tempo comecei a aperceber-me de que eram apenas más pessoas. Mas às vezes havia pessoas boas, mesmo boas, que sabiam falar comigo e eu conseguia falar com elas. Como se carregassem num botão e eu conseguisse falar livremente (havia uma profunda empatia), sem pensar o que os outros iam pensar de mim (sem vergonha). Essas eram pessoas boas. Porque até conseguiam falar com um anormal como eu. E não ficavam ali, simplesmente à espera e a pensar que anormal eu era e que chato tinha sido ficar sozinho comigo.

Sempre tive gostos estranhos. Particulares. Mesmo quando gostava da mesma coisa que uma outra pessoa (um livro ou um filme, por exemplo), raramente era pelos mesmos motivos. As minhas razões eram sempre diferentes; talvez erradas.

O ódio. O ódio – talvez não o saibam – é tão importante como o amor. Nunca subestimem a necessidade de destruição. É o ódio que abre caminho ao amor.

Não seria, pois, de excluir, que num dado ponto da minha vida, me haveria de passar completamente e matar uns quantos cabrões à minha volta com quem eu não conseguia lidar. É quando temos a escolha de deixar de falar com alguém, tudo se dissolve. Mas se há um destes cabrões que não nos sai da cara e que nos estragam totalmente a nossa vida e com quem não conseguimos lidar, então temos problemas. Podia ir para a prisão apanhar no cú, mas aquele cabrão não gozava mais com a minha cara. O problema é que eles acham sempre que os outros vão agir de forma razoável e que os seus pequenos e continuados agravos nunca vão ter consequências de maior – mas se tiverem azar, podem cruzar-se com um sacana como eu, que é maluco dos cornos, e que não tem outra forma de lidar com ele senão apagando-o da face da terra.

Esperei o filho da puta na garagem do escritório e espetei-lhe um tiro nos miolos.

Limpei os sapatos e fui trabalhar. Olhos baixos, pensando no que fizera.

Quando cheguei ao escritório, fui logo à casa de banho. Tinha a cara e a camisa manchadas de sangue. Lavei a cara. Tentei limpar a camisa, mas ficou ainda mais manchada. Uma grande mancha cor de rosa. Foda-se. Não era nada bom.

No fundo ansiava por ser apanhado. Queria que toda a gente soubesse.

Estava tudo fodido. Não havia nada a fazer.

Podia dar um tiro nos cornos e acabar com o assunto, mas tinha largado a arma não sei onde. Transpirava abundantemente. Fui então para o meu pequeno cubículo, peguei num papel e comecei a escrever-vos.

Não tenham piedade de mim. Não procurem os meus olhos.

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