Organização - Ordem
Da série: A Organização
O funcionário G., homem pequeno e gordinho, de bigode encerado, afadigava-se mais uma vez em torno a eterna pilha de papéis que estava sobre a sua secretária. K. entrou na sala.
– Bom dia, meus senhores! Trago um processo urgente.
O funcionário J. estava recostado na sua cadeira, com os pés em cima da secretária, que estava perfeitamente arrumada, e lia o jornal oficial da Organização. Era magro, com pernas longas, e vestia-se impecavelmente, com muita elegância. Baixou por momentos o jornal para olhar K.:
– Deixe aí nesse canto da secretária – disse, apontando para a secretária do colega.
– As minhas ordens são para que se dê despacho de imediato, caro senhor – replicou K..
– Com certeza. Mas as suas ordens não são as minhas ordens. Será tratado a seu tempo.
Resignado, K. pousou a pasta onde lhe haviam indicado. Sabia já que qualquer argumentação seria infrutífera. Debruçando-se sobre G., que não tirava os olhos das folhas, distribuindo-as rapidamente por várias pilhas, disse-lhe:
– Caro senhor, vejo que tem uma grande quantidade de trabalho entre mãos, mas quando prevê dar despacho àquele processo – e apontou para o canto da secretária, onde pousara a pasta.
– Bem vê que estou ocupado. Não me desconcentre por favor. Este trabalho é de extrema importância. Como já o realizei várias vezes, embora nunca até ao fim, como é óbvio – e fez um trejeito com a boca, encolhendo os ombros – faço como grande rapidez. Uma vez ordenados estes processos, o funcionário J. poderá finalmente lê-los e dar o respetivo despacho. Se nas folhas tivesse indicado o número do processo ou mesmo a página, tudo seria mais fácil, mas nesse caso o meu trabalho não existiria. Como já os li repetidas vezes é fácil identificá-los. É preciso algum talento, sabe. Para tudo é preciso algum talento. Seria muito fácil dizer-lhe quando vou tratar do seu processo, se soubesse quando vou acabar de ordenar estes que estou a tratar neste momento. A ordem de um processo é de extrema importância, pois as suas partes não são comutativas. O mesmo processo, ordenado de diferentes formas, daria origem vários processos diferentes. E todos seriam com certeza relevantes, mas apenas um seria o verdadeiro. E é isso que eu procuro aqui. O verdadeiro processo. Mas como lhe digo, tudo seria muito mais fácil se pudesse prever quando terminarei este trabalho. E seria até francamente simples informá-lo acerca disso, se não tivesse que recomeçar todos os dias do início. Por vezes até a meio do dia tenho que recomeçar.
– Mas porquê? – perguntou K. intrigado.
– Para dizer a verdade, não sei. Mas de alguma forma, sempre que recomeço, o trabalho que havia feito anteriormente parece-me errado e volto ao início. Tenho que verificar tudo novamente.
– Mas este processo que agora lhe trouxe está perfeitamente ordenado. Não lhe quer dar já despacho antes que se misture com os restantes? Seria mais simples.
– Quem me garante que seja como diz? É preciso ler todo o processo e refletir sobre o mesmo para o garantir. É preciso colocar diferentes hipóteses de ordenação e aventar qual será a mais vantajosa.
K. levantou os olhos. J. escutava a conversa. Percebendo que o notavam, pigarreou e sacudiu o jornal, voltando à leitura.
– Tudo se complica – continuou G. – quando não consigo terminar todo o trabalho num dia. No dia seguinte tudo me parece diferente e sou forçado a recomeçar. Mas por vezes até a pausa para almoço ou uma ida à casa de banho é o suficiente para produzir o mesmo efeito. Por falar nisso, tenho infelizmente que me ausentar. Não faltava muito para terminar, o que é uma pena. Se não tivesse vindo interromper, talvez tivesse conseguido. Já volto.
E saiu a correr.
Nesse momento o colega levantou-se e dirigiu-se rapidamente à secretária atafulhada de papéis. Pegou em meia dúzia de folhas e trocou-as de sítio. Desempacotou também o novo processo, que K. trouxera, e distribuiu-o indiscriminadamente pelas várias pilhas.
– Vejo que não aprova o meu procedimento – disse a K. – Basta trocar alguma folhas para que o nosso amigo coloque tudo em causa e recomece de novo. É extremamente meticuloso. Um ótimo funcionário.
– Interrogo-me apenas porque razão o faz. Um espetador menos atento diria que quer evitar que o trabalho chegue até si. Mas acredito que seja mais do que isso.
– De facto é mais do que isso. Seria impossível explicar-lhe em detalhe as minhas razões. Aliás, nem o desejo fazer. Mas digo-lhe apenas que, por vezes, garantir que determinado trabalho não é executado, ou que, pelo menos, não é concluído. É, em si mesmo, um trabalho. Muitas vezes, o mais importante. Pois que nada de proveitoso resulta de alguns processos. E se os deixássemos prosseguir livremente o seu impacto na Organização seria incalculável. Mas peço-lhe que não mencione nada do que aqui falámos ao nosso colega. É um excelente funcionário e executa um trabalho de extrema utilidade. É que por vezes consegue engendrar uma ordem proveitosa, e um processo perfeitamente inútil, transforma-se então em algo frutuoso, a que dou imediato despacho.
G. voltou afobado e sentou-se de imediato à secretária.
– Caro colega, espero que não se importe, mas já desempacotei o novo processo para que lhe dê imediato despacho. Bem como os outros, bem entendido.
– Claro. Claro. Já adivinhava. Estive até pensar (enquanto mictava) que a minha ideia não estava a resultar. É preciso pensar numa nova ordem.
– É isso mesmo G.. Uma nova ordem – e voltou ao seu jornal, colocando os pés em cima da secretária.
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