A mala
Estou muito preocupado com Helena. Obriga-me a carregar esta mala de viagem. Não me atrevo a argumentar.
Se não tivéssemos saído de casa naquela noite, teríamos morrido todos e talvez isso fosse melhor. Mas quem o poderia prever? Ansiamos em todas as ocasiões pela normalidade. Mesmo quando tudo indicia o contrário. Foi assim que decidimos ir a uma festa do outro lado da cidade. Por isso, não estávamos em casa quando começou o bombardeamento. Quando soou o alarme, interrompemos o jantar e refugiamo-nos na cave. Percebemos que o alvo principal deveria ser a alguns quilómetros de distância, talvez no centro da cidade. As bombas caiam com uma força terrível. Quando saímos para a rua iniciavam-se os incêndios, todo o centro da cidade ardia. Algumas horas depois, quando as equipas de socorro estavam no local, começou novo bombardeamento, desta vez sem aviso, perto do grande parque, onde ficava a nossa casa.
Helena não abre a boca. Não pestaneja, sequer. Talvez esteja louca. Porque não chora e grita? O normal seria fazê-lo. A sua boca é uma linha reta, indefetível.
Caminhámos para trás e para a frente durante vários dias. Os bombardeamentos repetiram-se. A vários quilómetros de distância, as bombas causavam ainda um estremecimento no peito; o chão fremia. Verdadeiras tempestades de fogo ergueram-se novamente sobre a cidade, visíveis a muitos quilómetros de distância.
Conseguimos finalmente aproximarmo-nos da nossa casa. As ruas eram quase irreconhecíveis e os prédios só fachada, sem janelas. No centro da cidade empilhavam cadáveres para cremar. As pessoas vagueavam ainda por entre os escombros com ar ausente, como se tivessem vergonha de procurar os seus pertences ou os cadáveres dos familiares. A nossa casa: destruída.
Agora todos fogem da cidade. O cheiro é nauseabundo e os ratos deliciam-se em caves cheias de mortos. A cidade estava cheia de refugiados vindos de leste, fugindo do exército vermelho. E agora todos eles fogem também.
Puxo Helena atrás de mim. Corremos pela plataforma da estação. Um mar de gente aglomera-se em torno dos comboios. Estamos numa pequena cidade a 40 quilómetros de Dresden. Ainda não foi bombardeada, e as pessoas levantam-se de manhã, tomam banho e vão trabalhar. Vi vários homens e mulheres bem vestidos e com ar apressado.
Maldita mala, vai fazer com que não entremos no comboio. Está apinhado. Talvez as bombas caiam hoje aqui; também há fábricas. Desesperado, empurro Helena. Ela recusa-se. Os seus olhos não saem da mala. Tira-ma das mãos e tenta levantá-la e empurrá-la com uma força sobre-humana pela porta do comboio.
A mala acaba por cair no chão e abre-se. Lá dentro o cadáver do nosso filho. Desidratado pelo calor do fogo está do tamanho de um bebé. O nosso único filho.
Vários transeuntes param com intenção de ajudar. Mas quando percebem do que se trata e recuam com horror.
– Porque ficámos em Dresden! – grita Helena. – Porque não fugimos antes? De que serve fugirmos agora!?
– Helena, perdoa-me.
– Tu e a tua fábrica! Tu e as tuas joias! Porque não vais para a festinha da empresa, lamber cú ao teu patrão, senhor diretor geral, Herr Gruber! Metes-me nojo! Eram as joias o que procuravas por entre os escombros de nossa casa, não era!? Não era o nosso filho! Fui eu, eu, quem o colheu dos braços da ama… Ah!, como queres que te perdoe. Deus que te perdoe.
*
História baseada em relatos de sobreviventes dos bombardeamentos de Hamburgo e Dresden durante a Segunda Guerra Mundial.
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