MÁQUINAS
A literatura é um jogo. É sobretudo uma recreação sobre o Mal. Nele, são satisfeitas necessidades de transgressão e firmados limites. Porque as palavras têm sempre retração, enquanto as ações são irremediáveis, não podem ser retiradas – a imaginação evita muitas desgraças. Contudo, ao designar a literatura como um jogo, quero também reafirmar o seu caracter lúdico. A literatura não deve ser entediante, deve ser, isso sim, divertida e excitante. O que também não a deve menorizar como coisa sem importância, porque o jogo e a brincadeira são os instrumentos primários do ensino da sobrevivência. E o que ensina então a literatura? A literatura é um exercício de autoconhecimento e, sobretudo, de empatia.
Destas duas asserções podemos inferir que qualquer romance, conto ou poema é uma máquina de empatia. Um mecanismo, se o quiserem, que interage com o nosso corpo (no sentido lato) e produz um resultado indeterminado. A indeterminação é resultado da complexidade os sistemas envolvidos, texto e corpo. Sendo que a beleza e universalidade de cada uma destas máquinas reside no seu grau de abertura, senão mesmo na sua impossibilidade interpretativa. Se se trata de um mecanismo rígido e fechado, portador ele próprio da sua chave, o seu alcance é limitado. Mas se for aberto, e concebido com intuição e delicadeza, este multiplica-se e transmuta-se em sucessivas excrescências que são, essas sim, o cerne do que chamamos de literatura.
Por vezes, seja por inclinação, gosto ou curiosidade, somos tomados pela súbita tentação de roubar o fogo aos deuses e perceber como funcionam estas máquinas, como foram construídas. Queremos voltar a camisola do avesso e palpar as costuras, perceber como foram cosidas; desmontar as suas rodas dentadas e perceber o que as propulsiona. Essa é, muitas vezes, uma triste ideia. Se é certo que os escritores participam, tanto como os leitores, neste jogo que é a literatura, para estes o seu caracter prazenteiro só poderá ser preservado pelo esquecimento de prévias dissecações. Muitos me dirão que a escrita, ao contrário da leitura, nada tem de recreativo; que se trata de uma dolorosa purga. Sois tolos? Acham ainda que se pode viver do ofício de escritor? Que tal possa sequer ser qualificada como uma profissão? Escreve-se por prazer, talvez por necessidade, o que ainda assim constituí um prazer.
William S. Burroughs desenvolveu a teoria paranoica de que a linguagem é um vírus. E de facto a linguagem comporta-se em grande medida como um vírus, combinando-se e recombinando-se, mutando-se. Aplicam-se até os mesmos princípios da teoria da evolução darwiniana, em que os textos se vão gradualmente perfeiçoando através de corruptelas até cumprirem a sua função da forma mais perfeita e eficiente. Subjacente a esta classificação da linguagem como um vírus, está o facto de sermos nós os seus hospedeiros – estamos infetados, o vírus reproduz-se dentro de nós. Se esta é uma relação simbiótica ou se conduzirá a um derradeiro mal funcionamento do hospedeiro está ainda por determinar. A palavra escrita, o advento do livro e da própria literatura fez com que o vírus possa sobreviver durante longos períodos fora do seu hospedeiro e tenha uma longevidade que abarca diversas gerações. Diminui, contudo, a probabilidade de mutação: os textos tendem a fixar-se, ao contrário de quando viviam apenas na memória imperfeita dos seus hospedeiros.
Estas ideias – a literatura como um jogo para a prática do autoconhecimento e empatia, onde exercitamos o próprio conhecimento do mal, sem verdadeiramente o praticarmos; sendo os seus objetos (romances, contos ou poemas) máquinas para este ofício; e a da linguagem como um vírus – interconectam-se e não se excluem, muito pelo contrário. Opõe-se apenas do ponto de vista conceptual num único ponto: se estas máquinas de empatia são entidades autónomas ou subordinadas. O que em si mesmo, após uma reflexão mais aturada, se revela uma questão sem sentido. Pois mesmo sendo autónomas necessitam de um grau de simbiose assinalável para continuarem a persistir – sem o hospedeiro perdem o sentido; e pela sua natureza nunca poderão ser subordinadas, pelo menos não ao criador, que perde todos os direitos com a sua exteriorização.
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