CRUELDADE

Caravaggio - Judite e Holofernes

Um corvo acetinado cerra-me as pálpebras, sua asa florindo-me os lábios. 
A criança dos dentes podres sorri.

Deixem-me arrumar pedras na dispensa. Depressa se transformarão em cravos encarnados, como lábios pintados. Como cerejas tintas, sorrindo mulheres às escondidas.

Imagina. O oráculo está sem palavras.
Feéricos, os lobos cantam na floresta. E a pobre menina segura o vestido à altura dos joelhos para passar sobre as pedras do ribeiro enluarado. Bendita seja a sua aflição! Porque se fez noite tão cedo e ela ainda menina.
É assim que eu sou.

Aqui sentado, ensimesmado, eu sou a aflição!

Quando penso na crueldade, faço-o por oposição; como quem cativa uma reserva de amor. Quando penso no obsceno é para namorar o casto. Quando dito o grotesco vejo apenas o belo.

A crueldade do teu olhar sabe-me a compota de morango. Apetece-me lambê-la. Até que nada mais reste.

Limpa as pedras. Range os dentes. Estica a língua. Beija-me os olhos. Santificada sejas. Enrola os cabelos e acende-me um sorriso.

Violeta, ao pôr-do-sol, o mar encerra-se.
As estrelas furam a noite.
Aperto a cabeça entre as mãos sem qualquer resultado.
Sussurram-me blasfémias.
E eu toco pacientemente com a língua no céu da boca. Mastigo em seco. Enrolo-me no lençol. Não conseguirei dormir.

Contas-me interminavelmente
E eu oiço-te interminavelmente
Como quem faz o mundo

O abandono sobrevém e fecho os olhos pensando em dormir.
É tão doce. Por um momento, de que tenho viva memória, desertei.
Pacientemente, o sono leva-me – muito mais tarde.

A doçura do teu olhar é tão cruel.

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