Incêndio
Zerkalo (O Espelho), Andrei Tarkovski |
A minha casa ardia. E eu estava cá fora, na beira caminho, a olhá-la lentamente. Cada labareda era uma língua que subia pelo meu ventre – ou talvez pelo pescoço, anichando-se atrás das orelhas (oh, que que tortura!). O som da madeira a estalar, o sopro ansioso do fogo, sussurrava sob o meu cabelo.
É que: fui eu que peguei fogo à casa. Percebem? Fui eu. É que: não devo ter casa. A casa é uma acumulação sem sentido… A casa é uma mortalha!
O que vai dizer o meu marido? E as crianças, quando chegarem da escola?
Dirão, que sou louca. Que sou louca. Pois claro.
Os livros. Os malditos livros de poesia, dir-me-ão. Pois que também estão todos a arder! A culpa não é dos livros. Ah, pois não.
A culpa não é de ninguém.
Começou agora a chover.
Dentro de pouco tempo, nada mais restará. Apenas um amontoado de pedras e vigas negras. Panelas contorcidas pelo calor e pratos estalados, enfarruscados; cabides. Tenho a sensação de que já vivi este momento. De que é apenas uma recordação. Um gesto tantas vezes repetido até à inconsciência – como quem ajeita o cabelo por detrás das orelhas.
E o meu marido e os meus filhos. E o meu marido e os meus filhos. Ah, meu deus. Tenho que fugir. Foi por isso; por isso; por isso. Quantas vezes não o imaginei? Era por isso que a queria queimar! Para que nada mais restasse. Para que tivesse de fugir.
Tenho pena?
Se tenho pena?
Os meus filhos vão sofrer. Os meus filhos. Nascidos do meu ventre. Vão sofrer.
Mas não posso mais ser a mãe deles. Lamento. Não posso mais ser mãe deles. Abre-se um buraco no meu peito; um buraco que engolirá tudo em seu redor. Há uma falta em mim. Alguma coisa por cumprir. Um devir impossível, que me atrai e arrasta. Talvez seja doida; apenas isso. Ou que raio de mãe e mulher é esta, capaz de deixar os seus filhos ao descuidado de outros?
Ontem à noite, ouvi as folhas das árvores a cair. Soprou uma leve brisa. E as folhas caíram. Estava tudo tão sossegado que as ouvi cair no chão, como um sussurro do mar; algo de muito leve, de insustentavelmente leve, me soprou no coração. E então percebi que era hora de partir…
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