Sol de inverno
Não me peçam para pensar de forma racional. Não é tempo disso. Chegou a hora; a hora. De proceder sem razão. Apenas e só fazer. Fazer o que me dizem as entranhas. Escutar o seu indelével pulsar. Romper e destruir. Agir sem consequência, para além dela, irracionalmente. Não estamos afinal sob controle. A razão abandona-nos e é às entranhas que devemos obediência. Somos visitados. E conseguimos, por vezes, observar esta visita. Uma sensação de estranheza invade-nos. Como se observássemos uma outra pessoa no nosso corpo.
Hoje, o sol está mais brilhante.
É por vezes necessário o abandono. Toda a felicidade provém do abandono.
Pensem num momento em que tenham sido genuinamente felizes. Sem mácula. Não estavam lá; adivinho que não estavam lá. Tinham abandonado – não o vosso corpo, mas a vossa alma (ou a consciência, que raio). Lembram-se desse momento de felicidade, mas algo o medeia e distancia. É impossível aproximarmo-nos dele. Como numa gargalhada. Numa gargalhada, numa gargalhada genuína, há um momento de abandono. Por um segundo, um segundo apenas que seja, a nossa consciência abandona-nos. Por um momento, não somos mais do que uma porta que se fecha ou uma pedra que alguém atira. Somos matéria inanimada.
O problema é que nos temos em grande conta. A nós e à nossa consciência. A brutal razão que nos…
Diabo!
Vou fixar o meu olhar no sol.
Fere-me os olhos e fico cego. Tenho que me sentar na beira do passeio – em lágrimas. Ouço os passos à minha volta, mas ninguém para. Seria estranho ter que explicar porque fiz isto.
– Está tudo bem consigo? – diz-me uma mulher.
– Sabe. É que olhei para o sol. Hoje estava excecionalmente brilhante e não o pude evitar. Mas já passa. Não aguentei por muito tempo. Procurava, bem vê, aquele momento, aquele momento que somos forçados a desviar o olhar, contra qualquer outra vontade.
– Eu levo-o até casa. Onde mora?
– Oh, não tenho para onde ir. Tenho casa, mas não quero ir para lá.
Fez-se silêncio.
– Leva-me a passear ao jardim, por favor? – disse-lhe. – Talvez esteja a abusar da sua paciência. Surpreende-me que não me tenha tomado por um louco, ou talvez tenha. Mas não responda. Leve-me apenas pela mão. O jardim fica já aqui em frente, do outro lado da rua.
Estendi-lhe a mão.
– Sou um péssimo cego. Tenho de praticar. Estava aqui a pensar sobre a felicidade, sabe?
– Eu sei tudo sobre a felicidade, mas não se pode pensar sobre ela.
– Oh, é bem verdade! Como sabe isso?
– Não sei.
Atravessamos a rua e entrámos no jardim. Senti a sombra falha das árvores despidas e as suas folhas molhadas de encontro ao saibro do caminho. Parámos por um momento e escutei os pássaros.
– Podemos sentar-nos? Leve-me até um banco, por favor. Estou ansioso por falar consigo, mas sei que não devo. Vou estragar tudo, percebe?
Sentámo-nos. Agradava-me o calor da sua mão. Mas por momentos retirou-a e eu agarrei o banco, áspero. Senti na ponta dos meus dedos o descarnar da tinta (vermelha ou verde?) e abaixo dela os veios da madeira. Tão áspera. Tão áspera como este inverno.
A minha vista retomava lentamente a sua função. O clarão branco desvanecia e distinguia já vultos e formas em meu redor. Aguardei ansiosamente, sem pronunciar uma palavra. Balançava inconscientemente o meu corpo para trás e para a frente.
Não estava ninguém a meu lado.
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