AUTO-RETRATO COM ESCALPELO


Sento-me calmamente na poltrona 
Atrás de mim, na estante, os livros ardem
Na bandeja de prata tenho um estilete 
É preciso permanecer calmo
Em qualquer circunstância 
Mesmo em caso de incêndio 

Escalpelizar pálpebras 
Com recortes florais 
Dissecar línguas 
Conservá-las em formol
Mas em nenhum caso 
Entrar em pânico 

Os livros estão cheios de línguas secas
Como flores prensadas
Conservando uma cor química 
Perfeitamente morta
Mas impressionante 

A temperatura a que ardem os livros
É porém inofensiva 
Pelo menos se a compararmos
Com a de um coração 
Um pé ou mesmo uma mão 

Sei de camas que entraram em combustão espontânea 
Apenas por mero ato reflexo
Há nos objetos uma involuntariedade que os acelera 

É com tudo isso que temos de lidar
O escalpelo serve de pouco
É a mão que atravessa o fogo
E se não me incendeio
É apenas porque permaneço calmo


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