NUNCA NADA ESTÁ PRONTO

– Gostei muito do teu último texto…

– Hum… Acho que ainda precisa de uma reescrita.

– Tudo precisa de uma reescrita. Mas assim, nunca nada está pronto. Passas o tempo a reescrever e não fazes nada de novo. Não acaba hoje o prazo para aquele concurso literário da caca?

– Pois claro, que nunca nada está pronto. Deus já acabou de fazer o mundo? Ainda assim temos que viver aqui, no meio da desarrumação.

– És tão estúpido, quanto brilhante. Metes raiva. Pensei que fosses anarquista e ateu. Invocas o nome de deus com demasiada facilidade.

– É um recurso estilístico.

– Poderias dizer: E o mundo, já está acabado?

– Não é a mesma coisa. E que bela merda seria, se tudo isto estivesse acabado. Poderá reconfortar o leitor e o autor, saber que nada está acabado, que tudo pode ainda ser perfeito.

– Só o autor. Para o leitor é uma fraude.

– É um consolo... Olha o Herberto. Passou a vida inteira a reescrever o que tinha.

– Já faltava a conversa do Herberto. A seguir vais gabar a sua misantropia; a forma como deixou a obra falar por si.

– Pois vou. Também não tenho qualquer desejo de ser conhecido.

– Então, mais vale não arriscares nada. Deixa essa merda aí na gaveta. Não vale a pena concorres. Ainda corres o risco de te tornares famoso.

– Gostava muito de poder recusar um prémio… parece-me esteticamente perfeito.

– És tão vaidoso.

– Pois sou. És tu quem me torna vaidoso. Quem diria que uma gata como tu, se interessaria por um camafeu como eu?

– És muito matreiro. Nem um elogio declarado me és capaz de fazer. Quantas palavras guardas por detrás dessa língua?

 Demasiadas. Vou escrever-te um poema inacabado.

 

Pois claro, que nunca nada está pronto.

Deus já acabou de fazer o mundo?

Porque hei de eu acabar o meu poema?

Se havemos de andar por aqui,

no meio desta desarrumação,

porque não haveis de chafurdar no meu poema.

 

O sétimo dia,

o da contemplação do seu trabalho,

fê-lo com certeza hesitar:

o que começa torto… ponderou.

Mas deus não pode,

ao contrário do que muitos pensam,

desfazer.

O seu único dom

é

fazer.

Deus é, de fato, pouco mais do que um homem: uma fraude.

Desde aí, tem sido esta merda que vedes.

Também não nos cabe a nós censurar o homem.

Tudo tem um ar perfeito, imperfeito.

Tudo parece bem acabado, mas às vezes damos de caras com as costas de um móvel por pintar.

Claramente não está acabado.

É bastante boa, a sua obra.

Não sei a que corrente artística

se poderá atribuir.

Realismo?

Essa é boa.

Surrealismo?

Também.

O melhor que fez,

dizem,

foi a poesia.

Pelo menos foi o que me disse um poeta.

Contudo, é do conhecimento geral que o homem é o menos poético dos animais.

E que crédito havemos de atribuir a tal afirmação?

Há quem diga que o melhor do mundo são os sapateiros.

Ou as crianças – também já ouvi essa.

As pessoas não cuidam bem do que dizem.

Acreditem.

Não tomem como verdadeiro nada que oiçam.

É certamente um logro.

A verdade,

se existe,

não pode ser escrita,

não pode ser dita.

A verdade não está no poema.

A verdade está em ti.

 

– Pronto. O que achas?

– Precisas que alguém te diga que está bem?

– Não.

– Então, não sejas estúpido, dá-me um beijo. Eu estou pronta.


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