Narvais (Livro do Apocalise)
Gostava de escrever algo atómico e irredutível. Divisível apenas por si mesmo e pela unidade. Como os números primos. Não será impossível. Há palavras assim, irredutíveis: amor, morte, branco, negro. Seria possível imaginar sucessivas combinações destas palavras, compondo infinitas variações de textos atómicos e irredutíveis.
O seu cálculo e verificação, tal como no caso dos números primos, é, porém, de crescente complexidade. Esta nova matemática, não deixando de ser exata, precisa de uma sensibilidade especial. Um trabalho para poetas. Para os leitores, contudo, a sua identificação não é difícil. Estas sequências de palavras, parecem-nos objetos naturais, a que nada poderá ser retirado ou acrescentado. Qualquer advérbio adicional seria uma excrescência sem razão, causaria asco (algo parecido com a vergonha alheia).
Algo de atómico e irredutível. Algo explosivo que terraplanasse o mundo; um holocausto universal que tudo destruísse. Vento e calor infernais, gritos desumanos, tudo codificado num texto irredutível. Um livro do advento, apocalítico, terminal, infinito. O último dos livros, que explodiria nos dedos de quem o escrevesse. Cada frase uma lâmina (perigosa), cada palavra uma pedra (inamovível). Um grito branco, esticado por uma luz implacável, até que tudo seja ausência e nenhuma sombra subsista. E depois uma noite eterna; um inverno permanente, frio e aconchegante.
Contudo, a linguagem é um sistema fechado, que se referência a si mesmo. Algo de paralelo à realidade, incapaz de a tocar. Mesmo na nossa mente o seu alcance é reduzido. Limita-se na grande maioria das vezes a despentear a superfície; nada de profundo é alguma vez atingido; faz-nos cócegas no pensamento; abaixo da superfície há um outro mar que não podemos manipular (com ou sem linguagem) e que nos conduz. É esse mar que por segundos podemos entrever nas palavras de um poeta. São os seus lampejos que iluminam os seres marinhos que o povoam: baleias brancas, narvais.
Tudo isto tem que ser iluminado, ainda que depois nada mais possa existir.
Bendito seja o livro do apocalipse; somos inexoravelmente atraídos para o fim.
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