Sono
Deito-me para dormir. Sinto
sempre, antes de adormecer, um breve tremor. Receio que durante o sono, sem
qualquer vigilância, me transforme ou dilua. Talvez seja irracional, mas só um
tolo poderia ter a certeza do contrário.
Um qualquer alheamento, semelhante a um sonho
diurno, pode produzir o mesmo efeito. Quando voltamos à realidade também há uma
inquietação. Uma sensação de perigo.
Sem a guarda atenta da nossa consciência como
garantir que não nos desagregamos? As nossas memórias diluídas, correndo por
entre dedos pouco firmes; o nosso caráter e intenções baralhados; os amigos
esquecidos ou remendados.
Os objetos são também invadidos pelo mesmo
tremor. Um frémito constante e sombrio. Vibram numa frequência subsónica.
Inconscientemente vibram. Por nós.
Pressentimo-lo, ao invés, sobretudo pela manhã,
na obscuridade do apartamento deserto, quando acordamos sozinhos. Nada disto
nos ocorre quando estamos acompanhados. Tudo é mais soturno quando estamos
sozinhos. Mais instável. Como se a realidade, sob uma tensão
incomensurável, ameaçasse ceder, quebrar sob esse frémito indómito e
sombrio, e gorgolejar cano abaixo, num grito exasperado.
Uma realidade sensível – e psicótica. Por nós.
Apenas por nós. Tremem por nós os copos no lava-loiça. E a faca lânguida. E o
saleiro nervoso. A jarra onde morre a flor... A mortalha da pequena mesa da
cozinha ameaça pegar fogo. Esfuma-se o meu hálito por entre os lençóis. A noite
enruga-se em meu redor e também o seu hálito é frio.
A memória de quem sou volta lentamente. É manhã.
Ligo a luz do candeeiro. Faço um café quente, a escaldar, onde misturo um pingo
de leite. Aqueço uma fatia de pão na torradeira. Saio para a varanda. Um
pequeno pássaro pousa no corrimão, ensaiando louvores. Deus do céu, mais um
dia.
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