Desoras


Desoras. O tempo grosa os telhados. Sinto-os a esfarelar. Lentamente.
Apercebo-me que os meus braços quase desapareceram. Abano a cabeça e volto a vê-los.

– Apetece-me um guisado de tubarão!
a sua voracidade é igual à das horas. Talvez por algum efeito mimético me contagie. É sabido que o estômago engana as horas. É ainda um poderosíssimo anestésico. A deglutição causa torpor. Nada mais alerta do que um indivíduo com fome. De barriga cheia estamos um pouco mais perto da morte, como no sono. E o tempo, esse, abranda perante a morte. É ainda o remédio mais eficaz para a sua corrupção – deixar-se levar de vencido. Sem propósito ou significação, o tempo cai por si mesmo, anula-se.

As mãos passam através da mesa. Continuo a alucinar. O cansaço rompe a realidade. Não confies nos teus olhos. Reparo agora no relógio. Ainda a desoras. Quem está a contar? Acendo um cigarro. Balouço-o em meu redor como um turíbulo, para afastar os maus espíritos. Despois, esqueço-me dele no cinzeiro. A sua derrota é exemplar. Deixa para trás uma carcaça tubular que se esboroa à mínima atenção. Os ponteiros do relógio seguem na sua trajetória curva – mas não exemplar.

Os peixes pressentem a carne fresca e indefesa. Devoram o seu quinhão. Estão agora, também eles, mais próximos do seu final. Quem está a contar? Se o cigarro não se consumisse não haveria provas. Um homem com fome vive mais horas. Talvez seja uma grande coisa, a fome.
a fome consome o cigarro. Uma vontade exausta, mesmo a vontade de comer, denúncia falta de vitalidade. Uma vez satisfeita, a vontade transforma-se em modorra; é, pois, a sua conservação, e não a sua dissipação, que traz plenitude e vitalidade. Incapazes de iludir a nossa natureza, olhamos tantas vezes para vida com o mesmo desinteresse que segue o coito.

– Limpa os olhos labrego! Olha para o que estás a fazer!
mescalina por favor. Acredito nos poderes curativos do deserto. Que é em tudo semelhante ao mar. O mesmo efeito curativo se pode atingir através do cansaço. Se estivermos demasiado cansados; cansados para além do suportável, incapazes de suster um pensamento, então dá-se por vezes uma súbita purificação da alma, semelhante apenas àquela que a uma criança pode produzir sobre o coração de um velho. O seu poder salvífico deriva da rendição incondicional que a antecedeu. Porque para atingir um cansaço extremo é necessária uma generosidade sem reparo.

– Místicos de merda! Os tubarões têm olhos de vidro!
desoras. Quem está a contar? Ponteiros. Ponteiros. Maldito ponteiros. Quem está a contar? Um pouco mais. Só um pouco mais. Ainda tenho sangue nas minhas veias. Direção nos meus olhos. E calor na minha pele.


O orvalho da noite espera-me. Fresco. Gelado.

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