Corvos
"Raven on a Branch", Maria |
Um olho e uma perna. Malditos
corvos! A sua insistência é delinquente. Porque teimam em pousar à minha
janela!? (cheiram a peixe!)
Debicam o vidro com suas
próteses ocas. Mas apenas o meu olhar é lúgubre. Só tenho um olho. E
tenho um olho só. Oscilo a cabeça: paralaxe.
Levanto-me da cama. Os corvos
deslizam na paisagem. O movimento é real. A aparência de movimento, não. A
deslocação dos objetos não é real. O peso do corpo sobre a minha perna é
real. O peso do mundo sobre o meu olho é aparente. Talvez seja uma
discriminação sem sentido… Chega a doer o peso do mundo sobre o meu olho.
O olho seco fecha-se por momentos, para que possa ser dissipada a tensão;
lambido pela húmida pálpebra, já não pica. Como num poço onde debruçamos uma
palavra, as imagens ecoam; pequenas pedras ressoam húmidas predileções. Pois o
mundo prefere indefetivelmente desmoronar e cair.
Asco.
Os corvos beijam-me os olhos.
Toda a luz se escoa em seu redor. Vórtices negros como pontos cegos na
paisagem. Santa Maria, mãe de deus, concede-nos a graça de conceber sem pecado.
Com lábios puros beija teu filho. Beijam-me a mim, que só tenho um olho e uma
perna. Infeta-me com a tua infinita beatitude. Para que possa amar o que de
finito há em mim.
Um homem que só tem um olho,
sabe que só tem um olho. Um homem que tem dois olhos, não sabe que só tem dois
olhos. Um homem que tem um olho, nem sempre sabe que ainda tem um olho.
É mais valiosa uma perna do
que um olho. Porque o movimento é mais precioso do que a aparência de
movimento.
O voo dos pássaros é o voo
dos pássaros. É incomparavelmente menos do que o meu passeio até à janela.
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