Minha
És minha, só minha, de mais ninguém. És um pedaço de mim; indistinto. Pensas apenas em mim, como eu penso apenas em ti. E eu também sou uma parte de ti. Somos talvez uma pessoa só; misturámo-nos. A maior parte dos dias não saímos sequer de casa. Ficamos nus, em cima da cama, abraçados; ou olhando-nos mutuamente, opiados, à distância de um braço, até que um de nós adormece por breves momentos e logo o outro lhe mexe no cabelo, com medo de ficar sozinho. É tão confortável o nosso quarto quente, abafado; lá fora o mundo, opado pelas cortinas vermelhas ao vento, parece-nos distante, estranho, alienígena.
Falámos muito, interminavelmente; agora olhamo-nos apenas e os nossos pensamentos tornam-se evidentes. De olhos fechados consigo ainda ver os teus olhos pestanejando ou o pescoço inclinado, o ombro roçando a orelha num tique nervoso; consigo adivinhar todos os teus movimentos e, quando os volto a abrir, estás exatamente onde te imaginava e os teus dentes perfeitos parecem sempre prestes a morder-me. Tenho tanto medo que te aconteça qualquer coisa. Não suportaria ficar sozinho. E sei que não haverá mais ninguém no mundo como tu. Só tu me entendes; só tu; só tu tornas o mundo suportável. Falamos a mesma língua nesta terra bárbara.
O teu cabelo loiro percorre-me as costas como um instrumento de tortura. Os teus lábios quentes abrem chagas no meu corpo. Deixa-me provar um pouco do teu vinagre.
Quando durmo a teu lado, faço-o profundamente, como uma pequena morte de que não vejo aparente retorno. Não sonho, não me agito, não me reviro. É um vazio completo. Em contrapartida, já não consigo adormecer sem ti. Acho até que nunca dormi verdadeiramente até te conhecer.
O que me atormenta é que este verão quente terá um fim. E não o posso suportar. Sei que tu também não. Perscruto então o mínimo sinal de dissolução. Mas esta busca foi talvez o primeiro e único sinal dessa desagregação. A primeiro pecado foi meu e de mais ninguém, mas já não consigo apagá-lo. Sei que tu o entendeste e perdoaste, mas não eu.
Foi então que, naqueles últimos dias de setembro, numa manhã fria, acordei sozinho. Senti um profundo pânico. Deixara-te escapar. Como fora capaz de dormir assim profundamente enquanto te afastavas de mim para sempre? Chorei convulsivamente, como uma criança. Não ouvi sequer a porta da rua quando entraste. Agarraste-me a têmporas entre as mãos frias e choraste comigo.
Na tua pequena mala de senhora, quase infantil, trazias um sinistro saco de papel pardo. Lá dentro, uma meia dúzia de comprimidos amarelos.
– O suficiente para nós os dois… juntos para sempre. Percebes?
– Sim.
Cada um de nós agarrou dois ou três comprimidos por entre os dedos trémulos. Ajoelhámo-nos em cima da cama, de frente um para o outro. Afagaste-me a cara inflamada, eras um anjo, o meu anjo. Colocaste os comprimidos na boca e eu não o impedi. Tomei também os meus. Mas o veneno foi suficiente apenas para um de nós.
E agora fecharam-me aqui, entre os loucos, e não me deixam morrer.
– Quero o seu cadáver! Deponham-no diante de mim! Quero decompor-me nele! – grito no meu quarto branco, vazio.
Quero segurar as tuas mãos até que se misturem com as minhas; agarrar as tuas têmporas até o sal das tuas lágrimas me corroer os pensamentos. Quero dormir a teu lado; só sei dormir a teu lado.
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