A BIBIOTECÁRIA
Alexandra trabalha na grande biblioteca central da capital. Há
muitos anos que é… é… que é bibliotecária. Todas as manhãs, pontualmente,
percorre o grande relvado que se estende em frente do edifício, passa na porta
rotativa, cumprimenta o porteiro com um aceno de cabeça e um sorriso
envergonhado (aconchegando o casaco) e percorre um corredor bastante comprido
até ao interior do edifício, onde ocupa uma pequena e obscura sala no arquivo
central. A sua secretária, iluminada por um único candeeiro, está sempre
impecavelmente limpa e desocupada no meio das intermináveis estantes. Lá muito
em cima, uma pequena claraboia deixa entrar uma luz baça e difusa que se perde
quase completamente no espaço interior antes de atingir o solo. A temperatura é
constante e o ar seco. Há sempre um barulho elétrico, uma espécie de zumbido
quase impercetível.
Antes de se sentar, Alexandra olha
sempre, por breves momentos, para a secretária vazia, na escuridão. Depois
acende o pequeno candeeiro, ainda sem se sentar, e pendura o casaco num cabide
há muito improvisado na lateral de uma das estantes. Observa novamente a
pequena secretária, agora iluminada, e senta-se por fim. As estantes alinham-se
agora simetricamente perante os seus olhos, em comprimento e altura, embebidas
numa penumbra que as estende para além do que os olhos podem alcançar; Alexandra
suspira. Abre uma das gavetas onde guarda o seu almoço: uma sandes de fiambre e
uma laranja, sempre o mesmo, embrulhados num saco de papel pardo. Está pronta
para começar o seu trabalho.
Alexandra gostava do cheiro
daquela sala. Cheirava a papel e o ar áspero arranhava-lhe a garganta. Todos os
dias catalogava e arquivava dezenas de documentos, revistas e livros que
aumentavam o acervo da biblioteca, interminavelmente. Como um animal, a
biblioteca crescia. Alexandra sentia-se excitada com toda aquela acumulação.
Lia tudo o que podia ou conseguia, sempre com um travo de angústia pela
impossibilidade de tudo fazer, de tudo ler. Ficava frequentemente até mais
tarde, depois do seu horário de trabalho e até que a biblioteca encerrasse
completamente.
À hora de almoço, também
pontualmente, abria a gaveta, pegava no seu saco e saía. Sentava-se por meia
hora nos bancos de jardim em frente da biblioteca e apanhava sol ou, quando
chovia, encostava-se num pequeno recesso do edifício, observando a chuva
enquanto comia. Não dizia palavra, não falava com ninguém. Nada no mundo lhe
parecia interessar. Nada para além da biblioteca e seu interminável fluxo de
palavras. Tinha por elas uma veneração quase religiosa.
Pedira recentemente para
trabalhar também ao domingo, apesar de nesse dia a biblioteca estar encerrada
ao público. As suas coleções, outrora pequenas, haviam crescido imenso graças à
sua determinação. Se fizermos algo todos os dias, repetidamente, sem descanso,
acabamos por dobrar o mundo à nossa volta. Olhava, com um triste orgulho, para
os seus longos anos de trabalho, as intermináveis horas, o movimento repetido
das suas mãos e dos seus olhos apaixonados, em cada página, isolando cada
frase, procurando, procurando sempre em cada sílaba a chave. Não haveria em
todo o mundo alguém que, ainda que inadvertidamente, tivesse porventura
codificado a chave da vida? A vida… a vida humana… haveria de ter algum
sentido, algum desígnio.
Trabalhava agora numa grande
biblioteca privada de um poeta, que havia sido doada. Não estava em bom estado;
havia ficado abandonada, privada dos cuidados do seu antigo dono por demasiado
tempo, até que se tornara um embaraço para os filhos. Exigia muito cuidado,
muito trabalho, muito amor, se é que o podemos dizer.
Num sábado à tarde, despertou-lhe
a atenção um volume bastante maltratado, numa edição vulgar, do venerável
Marquês de Sade. Donatien Alphonse François de Sade escrevera-o nos calabouços
da Bastilha, em pequenas tiras de papel que escondia dos guardas; depois da
tomada da Bastilha um dos guardas apoderou-se dos manuscritos e publicou-os –
pensou nisto por momentos. Folheou o livro. Estava cheio de pequenas anotações
e apontamentos. Lia-os com dificuldade, pois com o tempo tornaram-se quase
indecifráveis. Mas isso não impedia, antes estimulava, a sua curiosidade. Mais
uma vez, cada letra, cada sílaba, cada frase, era isolada pelos seus olhos
cansados, esperançosos; os seus dedos apontavam cada letra, agrupavam cada
frase.
Por momentos estacou. Os seus
lábios interromperam a sua interminável e silenciosa ladainha; os olhos
levantaram-se e encostou-se, pela primeira vez naquele dia, de encontro ao
espaldar da cadeira. Olhou para cima, para a claraboia: estava um dia enublado
e a luz que por ali entrava era ainda mais ténue e baça do que o habitual.
Ainda não eram horas de sair, mas levantou-se, pegou no casaco, e saiu.
Cruzou-se com algumas pessoas no corredor, mas não olhou para nenhuma delas,
absorvida por secretos pensamentos. O porteiro olhou para ela como se se
tratasse de uma aparição – consultou o relógio, intrigado, e afagou a testa.
Disse-lhe qualquer coisa, mas ela não o ouviu.
No dia seguinte, domingo, chegou
mais tarde, por volta das 11 horas da manhã. Estava um dia de sol radiante. Recebeu-a,
como habitual, o porteiro, que mais uma vez tentou entabular conversa com ela.
Não o olhou sequer nos olhos, esboçando um sorriso perturbado, e nada disse,
como se não houvesse sequer entendido o que lhe dizia. Trazia um saco na mão, o
que não era habitual; o porteiro reparou, mas também nada disse a esse respeito;
deu-lhe apenas a chave da sala, que ao domingo estava fechada.
Percorreu uma vez mais o longo
corredor. Entrou uma vez mais na sala do arquivo central. Estava sozinha.
Trancou a porta atrás de si e bloqueou-a com a secretária. Do seu saco retirou
várias garrafas de petróleo que alinhou numa das prateleiras – comprara-as essa
manhã na drogaria. Da mala retirou uma caixa de fósforos com vestígios de
gordura – também nessa mesma manhã, usara-os para acender o fogão e aquecer o
leite, num pequeno púcaro. Abriu uma das garrafas de petróleo – um cheiro
intenso, tóxico, invadiu o ar – e despejou-a sobre as estantes que estavam à
sua volta. Fez o mesmo com as restantes garrafas, rapidamente, até que chegou à
última delas, que despejou sobre si própria.
Acendeu então um fósforo e antes
que pudesse sequer pensar, incendiou-se a si e a tudo o resto que a rodeava.
Gritou horrivelmente. Um calor imenso apoderou-se de toda a sala.
Quem passeava nesse domingo no
jardim em frente da biblioteca viu uma coluna de fumo erguer-se misteriosamente
sobre o edifício. A claraboia estalara sob o calor e deixava agora o fumo e o
calor escaparem-se com aparente calma para a atmosfera.
Toda a biblioteca ardeu.
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