Holocausto
Ofereço-me em sacrifício. Que pela libação de meu sangue derramado se salvem dezenas de outras vidas. Que por uma hecatombe de reses humanas se salve um único homem. Ou que um holocausto purificador seja o seu repasto.
Somos como cabras que tudo comem até à completa esterilidade. O homem é uma praga que tudo devora. Persegue-o uma dívida. Temos para com o nosso criador uma dívida impossível de pagar. Se pelo meu sangue conseguisse libertar um único homem dessa dívida incobrável, ofereceria ainda a minha carcaça exangue aos chacais, para que limpassem os meus ossos; para que nada restasse, a não ser o esquecimento canino. Se nos conseguíssemos libertar da nossa sede de infinito seriamos talvez felizes. Se nos esquecêssemos do passado e do futuro, talvez vivêssemos realmente. Se nos conseguíssemos imaginar sem pai ou mãe, talvez o nosso coração batesse mais depressa; o nosso sangue seria mais vermelho, mais espesso, e os nossos sentidos mais apurados. Seriamos como o lobo. Dormiríamos de barriga cheia e caçaríamos quando tivéssemos fome. E nada mais. Uma luxúria sem nome subiria pelo nosso peito e tomaria conta da nossa cabeça, zunindo, zunindo; mais rápida do que o metal. Machos e fêmeas morder-se-iam em convulsão, copulando até que a mais fina espada lhes fendesse a espinha; e depois descansariam apaziguados, não desejando mais nada. Aquela coisa sem nome, que vive dentro do nosso peito, não é a alma, é a luxúria.
Não haveria amor que não fosse o da desenfreada luxúria, sem memória ou ansiedade. Ou amizade que não fosse a de partilha de uma carcaça ainda quente e pulsante. Lealdade ou domínio que não fosse o da verdadeira força.
Mas contraímos uma dívida de inteligência. Uma dívida que nunca poderá ser saldada. A nossa inteligência impede-nos de aceitar o acaso, o caos, a falta de propósito. Num ato de fé poderíamos genuinamente acreditar nelas, mas escolhemos ter fé na nossa inteligência. Se fizéssemos fé na nossa luxúria, viveríamos! Não seriamos felizes, mas apenas porque que a felicidade só a conhecem os infelizes – porque exige inteligência e memória; e é a sua ideia que amam e aspiram, não a sua experiência que lhes está vedada.
Não viemos ao mundo por nenhuma razão. Não o devemos a ninguém.
Corto os meus braços e o meu peito e as pernas e a cara e deixo que o sangue se evada. Ateiem uma fogueira por debaixo da minha cama e deixem que o cheiro a carne queimada vos invada as narinas. Percebam! Que percebam, meus senhores! Não devo a minha vida a ninguém!
Ofereço-me para o holocausto.
Somos como cabras que tudo comem até à completa esterilidade. O homem é uma praga que tudo devora. Persegue-o uma dívida. Temos para com o nosso criador uma dívida impossível de pagar. Se pelo meu sangue conseguisse libertar um único homem dessa dívida incobrável, ofereceria ainda a minha carcaça exangue aos chacais, para que limpassem os meus ossos; para que nada restasse, a não ser o esquecimento canino. Se nos conseguíssemos libertar da nossa sede de infinito seriamos talvez felizes. Se nos esquecêssemos do passado e do futuro, talvez vivêssemos realmente. Se nos conseguíssemos imaginar sem pai ou mãe, talvez o nosso coração batesse mais depressa; o nosso sangue seria mais vermelho, mais espesso, e os nossos sentidos mais apurados. Seriamos como o lobo. Dormiríamos de barriga cheia e caçaríamos quando tivéssemos fome. E nada mais. Uma luxúria sem nome subiria pelo nosso peito e tomaria conta da nossa cabeça, zunindo, zunindo; mais rápida do que o metal. Machos e fêmeas morder-se-iam em convulsão, copulando até que a mais fina espada lhes fendesse a espinha; e depois descansariam apaziguados, não desejando mais nada. Aquela coisa sem nome, que vive dentro do nosso peito, não é a alma, é a luxúria.
Não haveria amor que não fosse o da desenfreada luxúria, sem memória ou ansiedade. Ou amizade que não fosse a de partilha de uma carcaça ainda quente e pulsante. Lealdade ou domínio que não fosse o da verdadeira força.
Mas contraímos uma dívida de inteligência. Uma dívida que nunca poderá ser saldada. A nossa inteligência impede-nos de aceitar o acaso, o caos, a falta de propósito. Num ato de fé poderíamos genuinamente acreditar nelas, mas escolhemos ter fé na nossa inteligência. Se fizéssemos fé na nossa luxúria, viveríamos! Não seriamos felizes, mas apenas porque que a felicidade só a conhecem os infelizes – porque exige inteligência e memória; e é a sua ideia que amam e aspiram, não a sua experiência que lhes está vedada.
Não viemos ao mundo por nenhuma razão. Não o devemos a ninguém.
Corto os meus braços e o meu peito e as pernas e a cara e deixo que o sangue se evada. Ateiem uma fogueira por debaixo da minha cama e deixem que o cheiro a carne queimada vos invada as narinas. Percebam! Que percebam, meus senhores! Não devo a minha vida a ninguém!
Ofereço-me para o holocausto.
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