Fetiche


A primeira vez que vi uma mulher completamente nua não pude deixar de sentir uma grande tristeza por ela. Abracei-a com genuína pena e deixei-a manipular o meu pénis, mas não consegui olhar para o seu corpo. Os seus beijos excitavam-me terrivelmente e tive um orgasmo. Pareceu-me desiludida.

Desde então, o beijo tornou-se para mim uma insuspeita perversão. Tinha horror à cópula; achava-a abjeta; o beijo não era para mim um ato preliminar ou acessório, mas sim o objeto central da minha excitação e prazer. O prazer de morder. Abocanhar. Mordia as minhas amantes até ao êxtase. Nada mais lhes podia dar, pelo que depressa me abandonavam sem nada compreenderem.

Infeliz, cedo me encontrei na companhia de outros pervertidos. Aprendi que a perversão e o fetiche são o que mais claramente nos distingue dos restantes animais. Como nenhum outro, procuramos o prazer sem limites. É a inalcançável busca desse prazer ideal, que nunca se concretiza plenamente, que nos define. Foi sobre essa mesma energia que se fundaram impérios; se criou toda a arte, toda a civilização.

Mas não encontrei ninguém com quem comungar a minha estranha perversão. Entre as prostitutas era olhado com desconfiança. Não gostavam de mim; pressupunham sempre uma segunda intenção que não conseguiam discernir ou controlar. Apenas beijos? Sentiam que davam o que mais íntimo e precioso tinham e recusavam-se a fazê-lo.

Nunca desisti de ser feliz. Por mais remota que essa possibilidade se afigurasse, nunca desisti. Apaixonava-me genuinamente e talvez tenha sido amado, mas não durante muito tempo. O que de início parecia uma romântica contenção transformava-se em pungente frustração. Jovens castas, de boas famílias, e comiserada educação católica, fremiam de excitação nos meus braços, ansiando por sentir o seu ventre apaziguado, mas eu nem por piedade o poderia fazer. O que havia de errado com elas? O que havia de errado comigo? Não sabia responder. E também eu me sentia cada vez mais frustrado, constrangido no engano em que as conduzia.

Depois, já não me satisfaziam beijos banais. Como em todas as obsessões, a exigência tornara-se tão elevada que era quase impossível satisfazê-la, sendo fonte de infelicidade. Agora, dificilmente conseguia atingir um verdadeiro orgasmo, apenas um insípido esgar.

Quando conheci Aurélia, o seu olhar indiferente causou-me estranheza. As minhas primeiras tentativas, forradas de simulada empatia, foram repelidas com indiferença. A sua boca era extremamente atraente. Os lábios eram finos, muito delicados, perfeitamente desenhados. 

Ao contrário do gosto geral, os lábios finos e delicados parecem-me sem dúvida mais apetecíveis, pois é muitas vezes na contenção que se consegue por contraste atingir sublime beleza. E é nos momentos mais violentos que devemos exercer a máxima contenção. 

Aurélia era um pouco mais velha do que eu. Estudava arte. E produzia estranhos retratos; como nada que eu houvesse visto antes. Usava cores fortes; mas, em contraste, todas as suas figuras tinham um ar ausente, de abandono, como se toda a vida lhes tivesse sido sugada e restasse apenas uma beatitude sem nome. Não os compreendia. Mas não é estritamente necessário compreendermos uma coisa para a acharmos bela; as coisas mais belas não são de todo compreensíveis, disse-me. Também ela não os compreendia. Recusava-se mesmo a comentar, muito menos explicar, os seus quadros – porque tudo o que precisa de explicação é medíocre. A intenção do autor é irrelevante, dizia. O que importa é o que cada um de nós vê e sente, porque toda a arte é um espelho. Vemo-nos a nós próprios nos outros.

Quando sorria, a sua tez branca iluminava-se e os olhos verdes cintilavam. Tinha um cabelo acobreado, quase ruivo. E eu não conseguia tirar os olhos da sua boca. O movimento dos seus lábios excitava-me ao ponto de não reter nada do que dizia.

– Vejo um vazio enorme.
– É um autorretrato.
– Não faz justiça aos seus lábios.
– Claro que não – e olhou por momentos para os meus lábios.

Mais tarde, nessa noite, beijei-a. Foi um beijo frio.

– Não a quero enganar. Talvez seja melhor não continuarmos.
– Porquê?
– Não serei capaz de a amar. Sou demasiado egoísta.
– Porque haveria eu de ter essa expetativa? 

Pediu-me para pintar o meu retrato – dar-lhe-ia muito prazer. 

Fomos para sua casa, um estúdio na antiga zona industrial da cidade. Sentei-me num grande cadeirão enquanto ela se demorava em fastidiosos preparativos. Devia despir-me. Não me queria pintar nu, queria apenas que me despisse. Os seus lábios enfeitiçavam-me de novo e sempre, pelo que lhe pedi mais explicações. Ficamos naturalmente mais vulneráveis quando estamos despidos. Queria capturar essa vulnerabilidade.

Tentei beijá-la de novo, mas recusou-se. Despi-me. Pedi-lhe que falasse comigo, pois sentia-me aborrecido. Mas ela parecia testar a minha impaciência, dispensando-me escassas palavras. O cansaço acabou por vencer-me e adormeci.


Quando acordei o dia estava quase a nascer. Um tímido clarão insinuava-se já na janela da cozinha e reinava um silêncio absoluto. Lembrei-me então do quadro e tive curiosidade de espreitar como estava a ficar. Levantei-me embrulhado num cobertor pois estava frio. As pernas estavam dormentes e cambaleei um pouco.

– Ainda não está acabado – disse alguém. Estava sentada na bancada da cozinha, na penumbra. 

Apenas a ponta incandescente do cigarro a sinalizava.

– Aurélia?
– Não. Margarida.
– Margarida?
– A Aurélia está a dormir. Está muito cansada. Faça pouco barulho.
– Posso ver como está a ficar o quadro? Acha que a Aurélia se ia importar?
– Tenho a certeza que sim; não gosta que o façam; nunca.

Caminhei então na direção da cozinha. Estava curioso por vê-la mais de perto. Tinha dificuldade em vislumbrar a sua cara. A ponta do cigarro tornou-se então profundamente incandescente e de seguida avançou na minha direção. Era loira, muito bonita, com as maçãs do rosto salientes e um sorriso largo, mas o seu rosto estava parcialmente desfigurado por duas enormes cicatrizes que se cruzavam sobre a face direita. Tinha outras mazelas mais pequenas e sinais de queimaduras; os seus olhos cinzentos também estavam maltratados, estando o direito coberto por uma pala. Era estranhamente bela, talvez por ser misteriosa, e as suas feições pareciam-me familiares, como se já a tivesse visto antes.

– Sou a namorada da Aurélia. Muito prazer – e estendeu a mão na minha direção. Tinha uma outra cicatriz no antebraço.
– Costuma encontrar homens nus no apartamento da sua namorada?
– A toda a hora. A Aurélia não tem qualquer noção… nada lhe parece impróprio.

Talvez desperta pela nossa conversa, Aurélia juntou-se a nós na sala. 

Queria continuar a pintar, mas agora não precisava de que eu posasse. Queria apenas que lhe contasse um segredo. Algo que nunca tivesse contado a mais ninguém. Algo de que tivesse verdadeiramente vergonha. Como eram estranhos seus modos; invulgares os seus pedidos. Parecia quase uma criança.

– Porque haveria de o fazer?
– Porque estou a pedir de forma simpática.
– E o que recebo em troca?
– Um retrato.

Começamos então uma longa conversa em que confessei todas as minhas fantasias e a minha estranha condição. E o mesmo fizeram elas. Contaram como se tinham conhecido e apaixonado. Confessaram os seus secretos prazeres e fantasias. Excitaram-se e fizeram amor. Anoiteceu. Comemos. Parecia-me conhecê-las desde sempre. Deitei-me no sofá entre elas e passei os dedos pela cicatriz de Margarida; descobri o seu olho mutilado. Também a violência podia ser bela. O amor torna todas as coisas belas; mas o amor exige sacrifícios – disseram-me. O tempo parecia ter cessado e nada mais existia fora daquelas quatro paredes. Beijaram-me. As nossas línguas deslizavam lentamente; eram doces as suas bocas; os lábios eram delicadamente mordidos e puxados. Ataram-me à cama e não resisti. Aurélia cortou-me. Foi uma dor fina; em reflexo senti um sabor a ferro na boca e ejaculei. Também eu teria uma longa cicatriz. A dor, compreendi, é a irmã do prazer. Na excitação de ambas, somos e estamos num momento infindável, estamos plenos e vazios ao mesmo tempo, deixamos de ser homens e mulheres e é essa a infinita beatitude que todos procuram.

Durante todo este tempo, Aurélia não voltou a tocar no quadro. No fim da noite disse-me: o teu retrato está pronto, podes levá-lo; volta para a semana.

Via-me agora nitidamente, sem máscaras. O retrato era como um espelho. Olhos aguçados podiam até mesmo distinguir o meu primeiro golpe, pintado em antecipação.

O quadro que vira anteriormente, na exposição, não seria um autorretrato, mas um dos muitos retratos de Margarida. Cada um deles, compreendia-o agora, exigira uma dádiva de amor. E poderíamos nós evitar voltar onde somos amados?

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