UM BOM LADRÃO
“Na verdade, te digo: ainda hoje estarás
comigo no paraíso.” (Lucas 23)
É do conhecimento geral que as prisões, escolas e manicómios são instrumentos de poder do estado. Que, por sua vez, é um instrumento na mão de poucos. Os oprimidos são, contudo, os maiores defensores destas instituições, que creem ser criadas em seu favor e proteção. O que seria da pequena burguesia e classe operária, se não houvesse escolas onde educar os seus filhos, para que, como os próprios, ou um pouco mais acima na escala social, possam servir a oligarquia dominante? O que seria da moral e dos bons costumes se não encarcerassem em manicómios e prisões quem perigosamente desrespeita a propriedade privada ou, pior ainda, recusa oferecer o seu tempo à máquina produtiva? É preciso castigar esses mandriões – se nós temos de servir, também eles têm; que partilhem a nossa miséria. Mais do que isso: é preciso reabilitá-los. Porque quem rouba o pequeno burguês, e quem não faz a sua parte, rouba em decuplicado o grande senhor.
O anarquismo não precisa de mais defensores. De mais argumentos ou dialética. A sua razão está amplamente comprovada. Resta colocá-la em prática. Ora o meu método é tão eficaz como qualquer outro: sou um ladrão; um bom ladrão. É preciso acabar com esta questão da propriedade privada. É puramente arbitrária sua atribuição; iníqua a sua natureza hereditária. Porque haveriam alguns de ter tanto e outros tão pouco, quando cada um precisa daquilo que precisa. Eu tomo aquilo que necessito. Sem perguntar. Tentando não incomodar. Crio com certeza alguns aborrecimentos. Mas que culpa tenho eu que as pessoas sejam tão agarradas às suas posses. Se cada um trabalhasse para comprar coisas do vizinho, a vida seria muito mais agradável e relaxada… Nas tribos do Amazonas – não sei se sabiam – o caçador que captura uma presa é o último a comer. Que inveja se poderá produzir nesta situação? E o chefe tribal é o homem mais pobre da aldeia... Mas aqui não. Aqui, cada um tem as suas coisinhas e não há cá misturas! Tenho um carro, este documento diz que tenho um carro, e o carro é meu. Trabalhei para ele. É meu. Mas se eu preciso de um carro e não o tenho, por que razão deixaria de utilizar um que esteja estacionado na via pública – abandonado, na minha opinião. Se preciso de uma casa – não esperam, com certeza, que durma na rua, ainda que não trabalhe – porque não hei de deixar um calote no senhorio? Ou viver em casa de alguém que está de férias no Algarve. Se preciso de comer!, meus senhores, porque não hei de cultivar um terreno ou aliviar uma horta, que não é afinal de ninguém? – porque um pedaço de terra não pode ter um dono. Se os meus filhos têm fome!, porque não hei roubar o que me aprouver para os calar?
As pessoas ficam um pouco perplexas com este modo de ser. Mas eu não quero nada para mim. Não quero ter coisa alguma. Não espero enriquecer a roubar. Cabe muito pouco naqueles buracos que abrem nos cemitérios; e os meus filhos, esses que se façam à vida, não esperem nada de mim. Espero apenas usufruir do que existe. E as pessoas trabalham tanto, tanto, que não conseguem usar tudo o que têm. É preciso aliviá-las desse fardo.
Tenho contornado inúmeros casos de tribunal. Uso, não é subtração. Em nenhum momento quis privar os meus irmãos da sua propriedade – conceito que apenas aceito por conveniência. Apenas tomo o que está abandonado, de empréstimo, uso e devolvo assim que é pedido ou cesse o meu interesse.
Mas voltemos atrás. Talvez, os senhores não saibam o que postula a doutrina anarquista. Maior parte de vós associará a palavra à ideia de desordem ou caos. Não se trata disso. Mera propaganda. O anarquismo defende, tão só, a ausência de um poder central – um estado. Todas as relações de poder devem estabelecer-se entre indivíduos, iguais entre sim, cooperando em pequenos grupos – como afinal em tantas situações da vida – exceto aquelas que se querem reguladas em favor de alguém. Disto, não resulta desordem. Mas sim, pelo contrário, algo de verdadeiramente harmonioso. Porque qualquer poder central, independentemente da sua natureza, é sempre pervertido em favor de meia dúzia.
Conhecem aquele conto do Fernando Pessoa, o ‘Banqueiro Anarquista’? Li-o muito jovem. Na altura pareceu-me genial: a melhor forma de fugir ao jugo do dinheiro, é ter muito, mais do que qualquer necessidade pudesse exigir. Mas afinal não é assim tão inteligente. O banqueiro estava subordinado a não estar subordinado – e isso é não ser livre.
O juiz perdeu finalmente a paciência comigo e fui preso. Outra coisa não pode esperar aquele que afronta o sistema. Tenho agora cama, mesa e roupa lavada. Mas não é agradável. Não posso ir onde quero. Dirijo-me frequentemente para a saída, como se não soubesse de antemão que serei impedido. A liberdade é, acima de tudo, não reconhecer qualquer limitação, ainda que estas existam. Sou frequentemente castigado, colocado em isolamento, a minha pena sofre progressivos agravamentos.
Será que, como no ‘Banqueiro Anarquista’, uma espécie de inversão é a melhor estratégia? A reclusão total será a expressão máxima da liberdade? Foi certamente a essa situação de total reclusão que o meu comportamento (talvez libertário) me conduziu.
O dinheiro, é bem verdade, torna tudo muito pior. Possibilita uma acumulação sem limites. Antes dele, os ricos podiam ambicionar apenas a uns quantos tapetes e joias, tudo o mais era perecível e frequentemente distribuído pelos servos antes de fenecer. Agora, nada é suficiente, nada tem sentido.
Tal como a propriedade privada, que não faz qualquer sentido. “A propriedade é um roubo!”, escreveu Proudhon. Não a utilização, mas a posse. Nada há de errado em alguém usar um terreno – ou seja o que for. Injustificada, contudo, é a sua posse, convencendo todos os outros papalvos que, se o quiserem utilizar, lhe têm de dar o seu leonino quinhão.
Tanta gente a roubar e o ladrão sou eu.
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