O OUTRO
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Decalcomania, René Magritte
“Eu não sou eu nem sou o outro”, Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'
Há dias que gostava de ser outra pessoa – deve acontecer a toda a gente.
Sair para comprar tabaco e esquecer-me de voltar. Emigrar para o fim do mundo e esquecer-me de quem sou por falta de referência. Ou acordar simplesmente outra pessoa – completamente, sem lembrança ou remissão – com outros problemas. Afinal, é isso que nos define: os nossos problemas, as nossas limitações. Raramente olhamos para as coisas boas que se nos oferecem, para as qualidades que tomamos como garantidas, para as sortes que nos calham – eu não olho. É apenas natural. Muito comum entre indivíduos de inteligência triste – talvez a mais comum e produtiva, embora não a melhor das inteligências; não uma inteligência alegre, que passa por desvario e leviandade, quando é afinal a maior da inteligências: não levar este mundo a sério, não levar a vida a sério, não se levar a si próprio a sério. Porque, é certo, que tudo não passa de uma brincadeira de mau gosto. Parir-nos para aqui, assim; aparentemente irmanados, mas irremediavelmente sozinhos nas nossas cabeças; procurando uma incomunicável metade.
A minha vida é boa, mas ainda assim gostava de ser outra pessoa. Gostava de acordar todos os dias outro. Garantam-me isso e doo-vos as minhas parcas posses. Garantam-me a permanente descontinuidade dos dias. A certeza da terminação. A pausada alteridade. Ulm passado todos dias fingido. Um futuro aldrabado.
É que cansa muito viver num corpo progressivamente corpo gasto e dobrado, sempre o mesmo, curvado pelos hábitos do dono. A própria noção de posse é aqui, como em muitos outros casos, perversa. Tal como no amor (e tudo se pode reduzir a esta palavra demasiado elástica) é benéfico o desprendimento. O uso transiente dos corpos é culturalmente pejorativo – bem sei –, assim como a falta de personalidade, a alteridade nas mais variadas formas. Procuramos sempre uma justificação divina na convivência das partes, na sobreposição dos elementos. A tua vida é divina, tu és único; o nosso amor é divino, duas metades finalmente reunidas, assim estava destinado.
Uma merda – estamos aqui de empréstimo e nada disto é divino. Em breve, muito mais depressa do que imaginamos, seremos devolvidos à procedência. Cultiva o excesso e a convivência desregrada. Esquece o passado – empresta-o a alguém. Lambe o futuro como se não fosses lá chegar. Sê todos os dias o outro.
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