AS MALDITAS, CAMILA SOSA VILLADA (Tradução: Helena Pitta)
Este
livro chega-nos a partir de um ângulo morto, congeminado fora de vista,
articulado com uma força e ternura terríveis, recorrendo a uma imagética
surpreendente. As Malditas são criaturas da penumbra: procuram transparência
durante dia e o deslumbre à noite. E respondem à violência que as acolhe,
sem submissão, sem amargura, caminhando em matilha pelo parque. Não é uma
história em fica tudo bem. Pelo caminho a matilha é dispersa, toda a violência
e humilhação são possíveis, e fazem vítimas. Tia Encarna, a matriarca, tem 184
anos; uma santa de gesso chora ouvindo-a cantar; amamenta a criança que
recolhera no parque com os seus seios injetados com óleo de avião; María, a
muda, transforma-se num pássaro e passa a habitar o limoeiro da pensão,
alimentado apenas pela criança; Natalía, sétimo filho varão, transforma-se num
lobisomem nas noites de lua cheia. E todos estes acontecimentos, sendo
surpreendentes, não nos parecem menos plausíveis do que todo o inferno que as
rodeia, porque a realidade em que se movem é a da penumbra, do sonho, do
pesadelo. Não se volta do inferno sem dobrar a verdade.
“Enquanto
isso, éramos índias pintadas para a guerra, feras preparadas para caçar à noite
os incautos nas goelas do Parque, sempre chateadas, brutas até na ternura,
imprevisíveis, loucas, ressentidas, venenosas. Sempre com vontade de pegar fogo
a tudo: aos nossos pais, aos nossos amigos, aos nossos inimigos, às casas da
classe média com as suas comodidades e rotinas, aos meninos bem que se pareciam
todos uns com os outros, às velhas beatas que tanto nos desprezavam, às nossas
máscaras esborratadas, à nossa sanha pintada na pele contra esse mundo que se
fazia desentendido, à saúde deles à custa da nossa, que nos chupava a vida pelo
simples facto de terem mais dinheiro do que nós.
Assim
íamos atrás dos clientes, obrigadas ao calor, sentindo que não havia nada pior
do que ser uma mariquinhas sufocada pelo mundo quente dos homens, onde tudo se
resolve ao murro e ao pontapé. Com o desejo secreto de os matar a todos, de
acabar com o mundo de uma vez, a ver se assim acabava também a raiva acumulada
pelos maus-tratos perpétuos.”
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