CLUBE DE LEITURA DO COMUM – ‘CAMPÂNULA DE VIDRO’, SYLVIA PLATH (TRADUÇÃO MÁRIO AVELAR)



Na passada quinta-feira conversámos sobre a ‘Campânula de Vidro’ e a sua autora, Sylvia Plath. Foi uma conversa participada e fértil sobre um livro que se presta a diferentes leituras. Uma construção literária genial, escrita numa linguagem simples, mas poética, cheia de pormenores que se entrelaçam e se infiltram na leitura de forma subconsciente:  a atmosfera liminar, que antecipa uma transição (1) (2); a imagética recorrente dos espelhos, que introduzem um elemento inquietante na leitura – um dispositivo literário que ilumina conflitos interiores da personagem, a sua alienação, fragmentação e transformação (3) (4) (5) (10); a invenção de um nome falso (Elly) ou a relação de duplicidade com Joan, que depois parece adquirir consistência real – o prenúncio do duplo, que espelha um conflito interior irresolúvel (7) (8); a imagética animista, quase sempre associada a répteis e a transformação (9); a progressiva necessidade de ocultação de Esther (debaixo do lençol, colchão, casa) que culmina no desejo de morte – face a um conflito insanável, que não consegue resolver, procura o retorno a um estado intrauterino de desresponsabilização; os Rosenberg (casal acusado de espionagem) que simbolizam uma vez mais a duplicidade, alguém que age de forma camuflada, com intenções ocultas, e que neste caso foi perseguido e castigado.

Neste livro os planos social e individual cruzam-se e colidem numa fricção surda. É composto por vários ciclos de morte e renascimento (muitas vezes associados ao elemento água, como alguém muito bem notou durante a sessão: banho no hotel, mar, neve no final) – o resgate da tentativa de suicídio debaixo da casa assemelha-se a um parto (11). Levantada momentaneamente a Campânula de Vidro, símbolo de asfixia, mas também de separação do mundo, a história termina sob um manto de neve, branca e pura, que oculta a paisagem, embora esta não elimine (12).

Terminámos com a audição do poema ‘Lady Lazarus’ na voz da própria autora (link nos comentários).

Out of the ash

I rise with my red hair   

And I eat men like air.

Na próxima sessão (18 de julho) teremos a ‘Trilogia de Copenhaga’, de Tove Ditelevess (Tradução de João Reis). Para sessão de setembro foi votado o ‘Manual para mulheres de limpeza’, de Lucia Berlin (Tradução Rita Canas Mendes.)

Muito obrigado à Casa do Comum por acolher esta iniciativa e a todos os que participaram.

 

(1)    “Nova Iorque estava horrível nessa altura. Às nove da manhã, a frescura aparente que de algum modo invadia a cidade durante a noite, desvanecia-se como o fim de um sonho agradável. As ruas serpenteavam ao sol como miragens cinzentas no fundo dos desfiladeiros graníticos, os tejadilhos dos automóveis brilhavam e estalavam, e o pó seco como cinza invadia-me os olhos e a garganta.” (Cap. 1)

 

(2)    “Abri a porta e pestanejei diante da entrada mal iluminada. Tinha a impressão de que naquele momento não era noite nem dia, mas antes algum lúgubre terceiro intervalo que se intrometera entre ambos e parecia não terminar.” (Cap. 2)

 

(3)    “Deslizei para o elevador de serviço e carreguei no botão do meu andar. As portas fecharam-se como um acordeão silencioso. Foi então que as minhas orelhas adquiriram um formato estranho e dei de caras com uma chinesa enorme, com os seus olhos esborratados e idiotas postos em mim. Era apenas eu, como é óbvio. Fiquei espantada com o meu aspeto enrugado e envelhecido.” (Cap. 2)

 

(4)    “A cara no espelho fazia lembrar um índio doente.

Guardei o estojo na mala e continuei a olhar pela janela do comboio. Os lodaçais e os terrenos sombrios do Connecticut desfilavam, como um ferro-velho colossal, ante mim, um fragmento quebrado após outro, sem relação alguma entre si.

Que confusão de mundo é este!

Olhei de soslaio para a minha saia e para a minha blusa. Não me eram familiares.

A saia era verde, pintalgada com desenhos negros, brancos e azuis elétricos, com um cós justo, mais parecia um quebra-luz. Em vez de mangas, a blusa tinha folhos de renda nos ombros, pendendo como asas de um anjo.

Esquecera-me de guardar alguma roupa e deixara-a voar toda por Nova Iorque. Vi-me assim obrigada a negociar com a Betsy a troca da blusa e da saia pelo meu roupão com as centáureas azuis. Um ténue reflexo meu, com asas brancas e rabo de cavalo castanho, pairava como um fantasma sobre a paisagem.” (Cap. 10)

 

(5)    A princípio não percebi qual era o problema. Não era um espelho, mas sim uma fotografia.
Não se conseguia perceber se a pessoa na fotografia era um homem ou uma mulher porque tinha o cabelo quase rapado, embora despontassem aqui e ali, como cristas de galinha, alguns tufos de cabelo. Um dos lados do rosto daquela pessoa era púrpuro e saliente bojo, com manchas verdes que depois se diluíam em amarelo. A boca da pessoa era de um castanho pálido, com duas feridas rosadas em cada canto.

A coisa mais espantosa em relação àquele rosto era a sua acumulação sobrenatural de cores brilhantes.

Sorri.
A boca no espelho estalou com um esgar. (Cap. 14)

 

(6)    Não sei há quanto tempo tinha adormecido, quando ouvi bater Ao início, não prestei atenção, pois a pessoa que batia não parava de dizer «Elly, Elly, Elly, deixa-me entrar», e eu não conhecia nenhuma Elly. Foi então que ouvi uma pancada mais forte, ainda outra, e uma voz firme gritou: «Menina Greenwood, a sua amiga quer vê-la»; só nesse instante compreendi que era a Doreen.

(…)

«Elly, Elly, Elly», murmurava a primeira enquanto que a outra continuava a silvar «menina Greenwood, menina Greenwood, menina Greenwood», como se eu tivesse dupla personalidade, ou coisa parecida.” (Cap. 2)

(7)    “A Joan tinha liberdade para passear, a Joan tinha liberdade para ir às compras, a Joan tinha liberdade para ir à cidade. Eu recolhia todas estas informações com alguma surpresa amarga, embora mostrasse uma certa alegria. A Joan funcionava para mim como um duplo radiante do meu ego do passado, especialmente designado para me acompanhar e atormentar.” (Cap. 17)

 

(8)    “Às vezes pensava se teria inventado a Joan. Outras, pensava se ela continuaria a aparecer-me ao longo das várias crises da minha vida, para me fazer recordar aquilo que eu fora e por que passara, passando pelas suas próprias crises similares às minhas, debaixo do meu nariz.” (Cap. 18)

 

(9)    Senti-me traída e sem energia, como os farrapos deixados para trás por um qualquer animal após a muda de pele. Era um alívio ter-me visto livre do animal mas o meu espírito parecia tê-lo acompanhado, deixando-me indefesa. (Cap. 9)

 

(10)                       “Mas, quando chegou a altura de o fazer, a pele do meu pulso parecia tão branca e indefesa que não fui capaz. Era como se aquilo que eu queria matar não estivesse ali, naquela pele ou naquele pulso magro que se erguia sob o meu polegar, mas algures, num lugar mais profundo e secreto, num lugar bem mais difícil de alcançar.

Seriam necessários dois movimentos. Um pulso, primeiro, o outro depois. Se contássemos com a passagem da lâmina de uma mão para a outra, seriam três. Entraria então na banheira e deitar-me-ia. Pus-me em frente do armário dos remédios. Se me olhasse ao espelho enquanto o fazia, seria como observar outra pessoa num livro ou numa peça.” (Cap. 12)

 

(11)                       “Sentia a escuridão mas nada mais. A minha cabeça ergueu-se e eu sentia-a como se ela fosse a cabeça de um verme. Alguém gemia. Depois, tive a sensação de um peso grande, enorme, despedaçando-se contra a minha face, como uma parede de pedra, e o gemido parou. O silêncio regressou, aplainando tudo como água escura voltando à normalidade após nela ter caído uma pedra.

Um vento frio assolou o espaço. Estava a ser transportada, a uma velocidade incrível, por um túnel que penetrava bem fundo na terra. Depois, o vento parou. Seguiu-se um burburinho que parecia provocado por vozes protestando e discordando à distância. Depois, as vozes pararam.”  (Cap. 14)

 

(12)                       “«Reiniciaremos tudo do ponto em que ficámos, Esther», dissera, com um sorriso doce, de mártir. «Procederemos como se tudo tivesse sido apenas um sonho mau.»

Um sonho mau.

Para a pessoa dentro da campânula de vidro, vazia e imóvel como um bebé morto, o próprio mundo não passa de um sonho mau.

Um sonho mau.

Lembrava-me de tudo.

Lembrava-me dos cadáveres, da Doreen, da história da figueira, do diamante do Marco, do marinheiro, da enfermeira de olhar austero, do doutor Gordon, dos termómetros partidos, do negro com os dois tipos de feijões, dos quilos que aumentara por causa da insulina, do rochedo pairando entre o céu e o mar como uma caveira cinzenta.

Talvez o esquecimento, como se fosse uma espécie de neve, viesse e os cobrisse. Mas eles faziam parte de mim. Eram a minha paisagem.” (Cap. 20)

 


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