O MARINHEIRO QUE PERDEU AS GRAÇAS DO MAR, YUKIO MISHIMA (Tradução: Carlos Leite)

 


Dos escritores japoneses que conheço, Mishima é sem duvida o mais excitante. Era simultaneamente inteligente e perverso, explorando fantasias que o atormentavam. Seria, talvez, um homem bastante perturbado, mas estes são sempre bastante mais interessantes do que os restantes. Funcionam como amplificadores. Convém, porém, ter a capacidade de lê-lo sem preconceitos morais.

Neste livro está uma vez mais presente a metáfora da máscara (nomeadamente no texto copiado abaixo) e a obsessão por uma vida predestinada à glória. Este marinheiro foi considerado culpado, perdeu as graças do mar, abdicou.

Texto potencialmente chocante:

"Noboru segurou o gatinho pelo pescoço e levantou-se. Mudo, o gato pendia dos seus dedos. Deteve-se, procurando a piedade que pudesse existir em si; como uma janela iluminada vista dum comboio a alta velocidade, a piedade luziu um momento na distância e desapareceu. Sentiu-se aliviado.

O Chefe tinha insistido sempre em que seriam precisos atos como este para encher os grandes buracos do mundo. Já que nada seria capaz de o fazer, disse, o assassínio encheria essas cavernas do tédio mesma maneira que uma racha ao longo da face dum espelho enche esse mesmo espelho. Então teriam ganho um poder verdadeiro sobre a existência. 

Decidido, Noboru levantou o gato acima da cabeça e lançou-o contra o cepo. A coisa mole e quente fendeu o ar num voo sensação de penugem entre os dedos ficou.

- Ainda não está morto. Outra vez ordenou o Chefe.

Dispersos na sombra da arrecadação, os cinco rapazes, de olhos a brilhar, pareciam pregados ao chão.

Aquilo que Noboru levantou com dois dedos já não era um gatinho. Uma energia poderosa enchia-o até às pontas dos dedos e só teve de levantar o arco deslumbrante que essa força disparava para o ar e lançá-lo uma e mais outra vez contra o cepo. Sentia-se gigante. Só à segunda vez é que o gato soltou um curto grito gorgolejado...

O gato tinha resvalado do cepo pela última vez. As pernas de trás crisparam-se, traçando largos círculos frouxos no chão sujo e depois pararam. Os miúdos estavam cheios de alegria pelo sangue que se esparramou no cepo.

Como se olhasse para dentro dum poço fundo, Noboru via o gatinho caindo a prumo no pequeno buraco da morte. Sentia, na maneira como baixava a cara para o cadáver, a nobreza da sua própria ternura, mas uma ternura quase clínica. Das narinas e da boca do gato escorria um sangue vermelho escuro, a língua, torcida, estava colada ao céu da boca.

- Aproximem-se para poderem ver dele. melhor. Agora tomo eu conta dele.

Sem que o tivessem notado, o Chefe tinha calçado umas luvas de borracha que lhe chegavam aos cotovelos; inclinava-se agora sobre o cadáver empunhando tesoura. Brilhando friamente na penumbra, a tesoura era magnífica na sua dignidade fria e intelectual: Noboru não era capaz de imaginar arma mais adequada para o Chefe.

Pegando no gato pelo pescoço, o Chefe furou com a ponta da tesoura a pele do peito e fez um corte até à garganta. Então puxou a pele para o lado com ambas as mãos; a camada de gordura lustrosa tinha o aspeto duma cebola nova sem pele. O pescoço esfolado, graciosamente disposto no chão, parecia estar a usar uma máscara de gato. O gato era só um exterior; a vida tinha <<posado>> de gato.

Mas por baixo daquela superfície havia um interior macio e sem expressão, uma vida interior parada, branca lustrosa, em perfeita consonância com Noboru e os outros; e eles podiam sentir as suas próprias entranhas, dum negro de tinta, aproximar-se do interior do gato e cobri-lo com a sua sombra, tal como barcos cobrem a água. Agora, finalmente, os rapazes e o gato, ou mais verdadeiramente o que tinha sido um gato, tornavam-se um todo perfeito.

Gradualmente, a endoderme foi separada; a sua beleza de madrepérola não era nada repelente. Podiam ver através das costelas e observar sob o epiploon o quente e íntimo pulsar do cólon.

- O que acham? Não parece demasiado nu? Não me parece que estar assim nu seja grande coisa: antes algo como uma falta de educação ou uma coisa assim. O Chefe puxou a pele para o lado, no tronco, com as mãos enluvadas.

- Não podia estar mais nu do que está - disse o N.° 2. 

Noboru tentava comparar o cadáver confrontando duma maneira tão nua o mundo com as figuras tão inultrapassavelmente nuas da sua mãe e do marinheiro; em comparação, eles não estavam suficientemente nus. Continuavam envoltos em pele. Mesmo a sirene maravilhosa e o vasto mundo por ela evocado não poderiam, talvez, ter penetrado tão profundamente como este... o pulsar do coração nu colocava o gato esfolado em contacto direto com o centro do mundo."


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