A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS, YASUNARi KAWABATA (Tradução: Luís Pignatelli)

Esta é, pela sua natureza particular, uma história difícil de esquecer. Composta com um cuidado milimétrico, em que cada um dos elementos parece ter um sentido preciso, nada está a mais ou é supérfluo. Contudo, a sua construção exclui-nos propositadamente de uma interpretação - pelo que não é dito -, o seu significado, no que diz respeito à intenção do escritor, está perfeitamente blindado. É, pelo menos, um quarto com múltiplas portas e diferentes chaves; e mesmo quando os trincos giram sonoramente e porta abre, duvidamos se estamos a entrar ou talvez a sair da verdadeira alcova. Oscar Wilde tem, numa das suas cartas, uma daquelas frases que nos desequilibra: “Somente as pessoas superficiais não julgam pelas aparências. O mistério do mundo está no visível, não no invisível.”. Esta frase serve de epígrafe ao ensaio ‘Contra a interpretação’ de Susan Sontag, onde, entre outras coisas, se diz:

“No sentido mais estrito, todos os conteúdos da consciência são inexprimíveis. Mesmo a mais simples sensação é, na sua totalidade, indescritível. Toda obra de arte, portanto, precisa ser compreendida não apenas como algo interpretado, mas também como um certo tratamento do inexprimível.”

Contudo, é quase irresistível não experimentar chaves. Ainda que, no essencial, um bom livro seja aquele que nos induz uma inquietação física premente, fazendo-nos revirar no sofá e levantar para ir fumar um cigarro, não conseguimos deixar de o interpretar como faríamos com um mito: não sendo verdadeiro, deverá querer dizer algo que está para além da aparência imediata e manifesta, tem um significado oculto.

Um velho paga para dormir com jovens que, induzidas num sono profundo, nunca despertam durante a noite, não guardando conhecimento do ocorrido. São apenas admitidos na casa velhos que já não estejam no “ativo” (embora não seja exatamente esse o caso de Eguchi); as jovens estão “intocadas e são intocáveis”. Perante o silêncio e insensibilidade das belas adormecidas, Eguchi recorda antigas amantes.  

Qualquer análise moral da obra é, do meu ponto de vista, um beco sem saída – não conduz a lado nenhum. Poderíamos conjeturar que há aqui um jogo de oposições e correspondências: velho – jovem; feio – bela; sono – morte; erotismo – virgindade/impotência. “O sono é o irmão da morte”, diz o proverbio popular, e o sono destas belas aproxima-se bastante da morte. Tal como “a velhice é vizinha da morte”. Apesar de existir um erotismo latente, uma tensão erótica expressa nos desejos contidos de Eguchi, que se julga diferente de todos os outros velhos, que já não estão no “ativo”, quase conjeturando a sua vingança, as noites são profundamente castas. Embora o velho procure a companhia das jovens, estas são pouco mais do que objetos inanimados, silenciosos como budas, o que resulta numa introspeção do hóspede, no fundo sozinho – algo semelhante a uma oração. Mas todas estas chaves ou portas parecem conduzir a lado nenhum…

Eguchi experimenta acordar as jovens, sem sucesso; pede à senhora que o recebe, se pode ele próprio tomar o mesmo soporífero que as belas. O quarto é bastante misterioso, sendo minuciosamente descrito por Kawabata: a cortina carmesim, a luz uniforme que saí do teto, os soporíferos à cabeceira, os cobertores aquecidos, as belas, o tom da sua pele, o som do vento ou do mar lá fora e a forma como este se sincroniza com as batidas do coração… Como Mishisma nota (perspicazmente) na sua introdução, há, ao longo da novela, uma sensação crescente de claustrofobia, que envolve o próprio leitor, que se compara a um tripulante de submarino: “Já noutro lado comparei A Casa das Belas Adormecidas a um submarino no qual as pessoas são apanhadas numa ratoeira e o ar que respiram está a desaparecer gradualmente. Quando preso por esta história, o leitor sente-se aterrado e entontecido e apreende de imediato o terror do desejo estimulado pela aproximação da morte.” Pressentimos que algo vai acontecer. Um desenlace parece aproximar-se a cada visita; o quarto parece fechar-se sobre si mesmo; o sono e a insónia são progressivamente sufocantes. Pela sua conformação e estilo será esta uma metáfora da aproximação da morte, ao mesmo tempo claustrofóbica e redentora, tomando ar a cada descrição, pois é junto à beleza e pureza que a velhice se reconforta?

Voltando ao início: por algum bom motivo, esta é uma história difícil de esquecer; as coisas verdadeiramente complexas, no que se pode incluir uma simples sensação, são em certa medida inexprimíveis, pelo que muitas vezes nos temos de contentar com a forma como as rodeamos, as contornamos, as pressentimos de forma difusa. Aparentemente (e “só as pessoas superficiais não julgam pelas aparências”) houve um cuidado extremo em garantir que o texto não pudesse ser factualmente interpretado; a interpretação, a ser possível, está na forma como se contorna o que não é dito.


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